Muito se comenta no Ocidente sobre a serialização “semanal” de mangás. Contudo, pouco se discute sobre como o Japão passou de uma realidade na qual os mangás eram lançados mensalmente, ou de forma totalmente independente, para a criação de uma cadeia produtiva gigantesca dedicada à publicação semanal de mangás.
Nesse artigo, o Analyse It vai apresentar como essa transição ocorreu e de que maneira ela se tornou essencial para que o mercado de mangás japoneses se tornasse tão massivo quanto vemos atualmente.
O Mercado de Mangás nos anos 50
O modelo japonês de revistas se inspirava amplamente nas publicações americanas – que, por sua vez, foram influenciadas no começo do século por revistas inglesas e francesas – sobretudo em razão da forte presença cultural dos Estados Unidos no Japão do Pós-Guerra. Ainda assim, apesar dessa clara influência ocidental, era possível identificar, entre as inúmeras revistas que surgiam anualmente no país, características próprias da cultura japonesa. Uma delas era o aumento contínuo da presença de quadrinhos em seu conteúdo.
De acordo com a Nippon, em 1955 o mangá era responsável por 20% do conteúdo das revistas infantis. Essa informação é essencial para compreendermos o mercado de mangás no Japão da década de 1950: a maioria das obras era lançada de forma independente, por meio de sistemas de aluguel em livrarias. As revistas voltadas ao público infantil, mesmo em acelerada expansão, ainda eram dominadas por outros tipos de conteúdo, como entrevistas com atletas, ensaios, jogos, imagens divertidas e matérias educativas, sendo publicadas principalmente de forma mensal.
Mesmo assim, o mangá, que nasceu inicialmente como um conteúdo extra, logo se tornou um dos favoritos das crianças. Pouco a pouco, as revistas mensais foram ampliando exponencialmente o espaço dedicado aos quadrinhos. Essa tendência estimulou um investimento crescente em autores, que, com poucas páginas por mês, conseguiam trabalhar sem assistentes e sem grandes estruturas profissionais.
Contudo, as editoras rapidamente se depararam com dois grandes problemas interligados:
1 – Embora o conteúdo mensal agradasse bastante às crianças, o lançamento semanal era mais eficiente para alcançar o público adolescente e adulto. Revistas destinadas aos adultos, de fato, já estavam disponíveis semanalmente nas prateleiras japonesas e alcançavam tiragens importantes.
2 – Havia forte pressão social por parte de adultos japoneses para que os adolescentes deixassem de ler mangás após os treze anos, sob o argumento de que poderiam atrapalhar os estudos, focando em livros educacionais ou produtos artísticos considerados de “maior valor”. Em 1957, o jornal Mainichi Shimbun revelou que as revistas mais consumidas por estudantes do ensino médio eram publicações voltadas ao campo educacional, sobretudo à preparação para provas e exames, ou revistas para adultos como a Shuukan Asahi e Sunday Mainichi.
Dessa forma, o mercado dos anos 50 era particularmente complexo. O mangá era um produto amado pelas crianças, mas tinha baixa penetração entre adolescentes e adultos. As revistas infantis, quase todas mensais, estavam aumentando a quantidade de quadrinhos em suas edições, mas os mangás continuavam sendo minoria. Isso levava muitos autores a preferirem o modelo independente, por meio dos tradicionais “mangás de aluguel”, muito comuns nas livrarias da época.
Transicionando do Mensal para o Semanal
Uma das primeiras editoras a apostarem em revistas Shonen* semanais foram a Kodansha e a Shogakukan (*Nesse artigo irei me concentrar nas revistas shonen, já que o processo das revistas Shoujo é diferente). Ambas iniciaram praticamente de forma simultânea estudos de mercado para avaliar a viabilidade do projeto. O principal motivador dessas editoras era o fato de que o público japonês, acostumado às séries de televisão semanais e aos jornais e impressos distribuídos regularmente, já consumia produtos culturais de maneira contínua.
Os estudos também apontaram que a periodicidade semanal permitiria ampliar o lucro, graças ao aumento das publicidades e ao maior engajamento do público japonês (mas também mundial), que demonstrava cada vez mais interesse em consumir mídias semanais ou diárias.
O público-alvo composto pelos “Baby Boomers” também se mostrava promissor. Com o rápido crescimento populacional do Japão no Pós-Guerra, o número de crianças e adolescentes capazes de consumir uma revista semanal era enorme, criando uma base de leitores potencialmente estável e expansiva.
Contudo, o lançamento semanal apresentava diversos problemas estruturais. O primeiro deles era o altíssimo custo de produção. Como Shigeo Nishimura explica em seu livro Farewell, My Youth Jump, uma revista semanal de sucesso pode gerar grande retorno financeiro, mas um fracasso pode provocar um rombo severo, que muitas vezes se torna mortal para as editoras. Por isso, o risco associado às revistas semanais sempre foi extremamente elevado, e essa é uma das razões pelas quais não vemos o surgimento de novas grandes revistas Shonen semanais há décadas no Japão (além da Crise Editorial e migração para o modelo digital).
A logística também era um desafio financeiro. As revistas semanais precisavam estar disponíveis em inúmeras lojas espalhadas pelo país. A impressão inicial da Weekly Shonen Magazine, em 1959, foi de 205 mil cópias, segundo a MAGAVIA. Já a Weekly Shonen Jump, lançada em 1968 com um orçamento menor e inicialmente em periodicidade quinzenal, teve tiragem inicial de 105 mil cópias, de acordo com Ikegami Ken. Ambos os números eram extremamente altos, mesmo considerando estratégias de redução de custos, como salários menores para editores, autores novatos com custo de manuscrito baixo e materiais de produção da revista mais baratos.
Primeira Edição da “Weekly Shonen Magazine”.
Um segundo problema envolvia o próprio público-alvo. Não havia garantia de que os adolescentes consumiriam massivamente revistas Shonen semanalmente. O objetivo editorial era justamente “quebrar a barreira dos 13 anos”, estimulando adolescentes a continuarem lendo mangás shonen após essa idade, algo que não acontecia nos anos 40 e 50. A presença semanal das revistas nas prateleiras, aliada à oferta de conteúdos vistos como mais “respeitáveis” pelos pais, poderia ajudar a superar essa barreira, mas não era uma tarefa simples. Apostar no público adolescente era ainda mais arriscado do que apostar no adulto, já que esse grupo tem menor poder aquisitivo.
As revistas Shonen, portanto, precisavam ser baratas e acessíveis, situando-se em uma faixa de preço compatível com a mesada de um adolescente, permitindo que ele consumisse o conteúdo semanalmente. Essa estratégia era difícil de equilibrar. A própria Shonen Magazine precisou adaptar rapidamente seu preço inicial de 40 ienes (11 centavos de dólar na época) para 30 ienes (8 centavos de dólar), buscando maior acessibilidade. No entanto, preços tão baixos tornavam difícil alcançar retorno econômico satisfatório caso as vendas não fossem excelentes, sobretudo porque impressões massivas eram necessárias para cobrir o território japonês inteiro. A Weekly Shonen Jump, por exemplo, que inicialmente operava com apenas quatro editores e um orçamento considerado pequeno, teve uma impressão inicial de grande escala, exigindo enorme investimento.
O terceiro desafio dizia respeito às equipes editoriais das revistas Shonen. Elas eram amplamente adaptadas ao modelo mensal, que já era considerado bastante exigente. A mudança para o formato semanal exigia multiplicar a produção: realizar o quadruplo de entrevistas, de jogos, de conteúdos educativos e também de páginas de mangá. Essa sobrecarga poderia prejudicar toda a cadeia produtiva se não fosse gerida com precisão.
Mesmo diante de todos esses desafios e problemas, tanto a Kodansha (com a Weekly Shonen Magazine) quanto a Shogakukan (com a Weekly Shonen Sunday), conseguiram transformar suas revistas semanais em grandes sucessos. Com conteúdo de alta qualidade e uma sintonia afinada com a demanda dos adolescentes da geração “Baby Boomer”, essas editoras acabaram encontrando uma verdadeira mina de ouro.
A Expansão do Modelo Semanal
O passo seguinte foi justamente a contínua expansão das revistas. Durante os anos 1950 e 1960, diversas editoras tentaram adotar o modelo semanal; a maioria acabou fracassando no curto ou longo prazo, mas, ainda assim, a Shonen Magazine e a Shonen Sunday continuaram crescendo de maneira consistente e se consolidando no mercado.
Nesse período, ocorreu também uma mudança significativa entre os autores que produziam mangás. Com o declínio das chamadas “Livrarias de Aluguel” e diante de um ritmo semanal muito mais exigente, muitos artistas que lançavam obras de forma independente entre as décadas de 1940 e 1960 acabaram deixando a indústria. Esse movimento abriu espaço para uma nova geração, habituada a trabalhar com assistentes e com métodos de produção muito mais adequados tanto ao modelo semanal quanto ao mensal. Essa nova leva de autores – formada pelos remanescentes das Livrarias de Aluguel e pelos novos talentos que surgiam mês a mês – se tornou essencial para o desenvolvimento editorial da Shonen Magazine e da Shonen Sunday.
Mesmo assim, na década de 1960 ainda havia poucas séries de mangás dentro das revistas Shonen. No início da década, a Weekly Shonen Sunday possuía apenas cinco séries, enquanto a Shonen Magazine contava com oito. O restante das páginas era ocupado por one-shots, yonkomas, entrevistas, jogos, materiais educacionais, ilustrações divertidas e outros conteúdos que já eram bastante populares nas revistas Shonen desde os anos 1950. A Sunday e a Magazine estavam longe de serem revistas totalmente dedicadas aos mangás, mas ainda assim já demonstravam um investimento expressivo e crescente nessa nova forma de arte que emergia com força.
Oguma Eiji e Yokota Kayoko escrevem no Asian Pacific Journal, no artigo “An Industry Awaiting Reform: The Social Origins and Economics of Manga and Animation in Postwar Japan”, que um dos principais motivos do sucesso dos mangás semanais foi a mentalidade conhecida como Kyōyō-shugi. Essa filosofia surgiu na elite culta durante a Era Taisho (1911–1925), influenciada sobretudo pela Educação Bildung Liberal Alemã do século XIX, que considerava a “Literatura e a Arte” como a expressão máxima do desenvolvimento humano, e necessária para a correta formação individual.
Dentro dessa perspectiva, investir em artistas não era visto como “um gasto qualquer”, mas como um processo evolutivo essencial para o progresso da sociedade. A ideia de que a arte era um caminho para alcançar um estágio superior de formação humana foi amplamente incorporada pela classe média emergente do Japão, que passou a consumir livros, músicas e objetos culturais, tanto ocidentais quanto japoneses, como forma de “crescer como ser humano” e também socialmente.
Goethe, um dos autores que mais influenciaram a Bildung
Os artistas japoneses e editores passaram a adotar constantemente elementos do Kyōyō-shugi na mentalidade de trabalho. Autores como Akatsuka Fujio, Ishinomori Shōtaro e Fujio Fujiko foram fortemente inspirados pela literatura ocidental. O próprio Akatsuka Fujio relatou que o principal conselho dado por Tezuka Osamu para se tornar um grande autor era claro: “Não leia mangás; consuma filmes, peças teatrais, músicas e livros de primeira categoria”.
Essa mentalidade dos autores, combinada à mentalidade da população, estimulou um grande investimento na área artística no Japão do Pós-Guerra. O resultado foi um crescimento expressivo dos quadrinhos ao longo dos anos 1960: uma mídia que inicialmente era marginalizada passou a se consolidar como uma das formas mais populares de expressão cultural no país – um movimento bem distinto do que ocorreu nos Estados Unidos, onde, no mesmo período, os quadrinhos começaram a enfrentar um declínio significativo.
Com uma nova geração de autores surgindo, somada a investimentos crescentes e à alta demanda, as revistas expandiam ano após ano. Os salários pagos aos autores, embora não fossem considerados altíssimos, eram vistos como bons para a época, e até os anos 1970 houve um crescimento contínuo na remuneração dos artistas por página.
De acordo com Takekuma Kentarou, que trabalhou tanto na Big Comic Spirit quanto na CoroCoro, incluindo mangás de Super Mario Bros. (Nintendo), o pagamento por página nos anos 1970 era de mediamente 5.000 ienes para autores novatos, valor superior apenas em revistas de maior prestígio. Curiosamente, de acordo com a Asian Pacific Journal, esse pagamento permanece praticamente o mesmo até hoje, mesmo tendo um aumento no número de mangakás, instigado pelo prestígio da profissão e remuneração por royalties em caso de sucesso da IP.
Foi justamente esse bom nível de remuneração por página, visto de forma positiva durante as décadas de 1950, 1960 e 1970, que estimulou muitos artistas a investirem na carreira de mangaká, mesmo quando enfrentavam um início financeiramente limitado e uma visão relativamente negativa sobre a profissão do quadrinista (algo que se reduziu consideravelmente ao longo das décadas seguintes). Takekuma Kentarou afirmou que, durante os anos 1970, era possível rapidamente para um autor comprar uma casa apenas com os ganhos obtidos em uma revista de porte médio, algo que ele mesmo considera muito mais difícil atualmente, sendo necessário depender de outros elementos (Expansão da IP, Vendas Volumes, Poupança…) para ter sua casa própria.
Primeira Edição da “Weekly Shonen Jump”
É nesse contexto que surge a Weekly Shonen Jump em 1968. Idealizada inicialmente pela Shueisha e pelo editor-chefe da Shonen Book, Tadasu Nagano, a revista tinha como objetivo se tornar a “Seventeen” japonesa – a Seventeen é uma clássica revista americana para adolescente -, como relatado por Shigeo Nishimura em seu livro autobiográfico sobre o período. No entanto, o projeto rapidamente se tornou ainda mais centrado em mangás do que a Shonen Magazine e a Shonen Sunday.
Esse grande foco da Weekly Shonen Jump em obras de mangá acabou se revelando um diferencial decisivo. Mesmo estreando com apenas oito obras, duas séries e oito one-shots, a revista conseguiu se tornar um enorme sucesso comercial, ao contrário de diversas outras tentativas fracassadas de revistas semanais Shonen lançadas nos anos 1960. Nos anos 1980, menos de quinze anos após sua criação, a Jump já se consolidaria como líder absoluta do mercado japonês.
A revolução editorial promovida pela Weekly Shonen Jump estimulou o surgimento de outras revistas semanais voltadas quase exclusivamente para mangás. Durante as décadas de 1970, 1980 e 1990, essa expansão do modelo semanal continuou, até que a explosão da Bolha Econômica de 1991 alterou profundamente a realidade do Japão. A estagnação econômica resultante levou, em meados de 1990, a uma queda significativa nas vendas das revistas japonesas.
Esse período marcou o início da era da crise editorial, conhecida entre especialistas econômicos e editoriais como Shuppan Fukyou. No entanto, essa é uma discussão que merece uma análise específica em outra matéria.
A transição do sistema mensal para o semanal foi um fenômeno único no Japão e ocorreu justamente devido à convergência de diversos fatores econômicos, sociais e culturais moldados pelo contexto do Pós-Guerra. O país criou um sistema que, para muitos especialistas – como Takeshi Kikuchi, autor de All About Manga Business -, tornou-se um dos principais diferenciais para a popularização global dos mangás em comparação aos quadrinhos europeus e às comics americanas.



