
Ruri Dragon é um mangá anomalia: um sucesso tão imediato e forte na Weekly Shonen Jump que a revista, sonho de milhares e milhares de autores, permitiu que a obra ficasse dois anos num hiato após apenas seis capítulos publicados, cerca de um volume.
Ruri Aoki certo dia acorda e percebe, ao olhar para um espelho, que chifres cresceram na sua cabeça. Bizarramente calma, sua mãe explica que Ruri é na verdade meio dragão. A garota quer manter sua vida cotidiana comum, mas agora precisará lidar com as consequências de suas mudanças biológicas – está gradualmente adquirindo mais características de dragão.
Mas o que faz Ruri Dragon especial? Muitos se perguntam qual a diferença desse slice of life para tantos outros na indústria.
Para falar disso, traçarei o caminho do autor Masaoki Shindo até Ruri. Não é nenhuma exigência para entender ou gostar da obra, mas serve de excelente fio condutor para a análise. Para isso terei que falar de maneira um pouco mais aprofundada primariamente de duas obras que moldam o mangá: o tokusatsu Kamen Rider Kuuga e a série de visual novel Narcissu. Sim, fontes bem diferentes, mas que se conectam de maneira surpreendente.
A influência de Kuuga não é algo que Shindo esconde, o autor referencia a obra constantemente em suas artes. Inclusive a imagem que estampa o artigo é do vídeo musical oficial da Jump para a série, com Ruri recriando a icônica pose do herói Kuuga. Em diversos quadros temos essas referências, mas olhando a fundo podemos ver que isso não fica apenas no campo visual, mas também no temático e narrativo.
Kamen Rider Kuuga (2000) conta a história de Godai Yuusuke, o aventureiro mais otimista que você pode imaginar. Influenciado por um professor de sua infância, Godai acredita que o céu azul sempre aparecerá, não importa como esteja o dia e sua missão de vida é ajudar os outros para que possam enxergá-lo também. Entretanto, tudo muda a partir do dia que os Grongi, uma tribo ancestral de humanos mutantes, desperta e começa a massacrar pessoas aleatoriamente pelo Japão.
Godai acaba encontrando uma relíquia antiga que o transforma no titular Kamen Rider Kuuga, um ser com o mesmo tipo de força dos Grongi, sendo o único capaz de derrotá-los. O pacífico Godai agora precisa ir aos poucos descobrindo suas novas habilidades de luta para impedir mais mortes e a destruição da vida cotidiana de uma sociedade aterrorizada por esses monstros.
Começando do zero, o herói vai ficando cada vez mais “monstruoso” e semelhante aos Grongi. A série aborda histórias singulares sobre o medo do futuro: indo de um garoto no Ensino Fundamental inseguro quanto às expectativas colocadas nele como estudante a até uma mulher grávida com medo do mundo que existirá para seu bebê. A insegurança de Godai é de que poderá continuar humano, sorrindo e confiante no céu azul.
Voltando para Ruri, a influência narrativa aparece mais clara. Ruri está gradualmente despertando poderes novos: chifres, fogo, controle de raios, etc. Cada novo poder que desperta causa um novo problema para Ruri, mudando a vida mundana que a garota quer tanto proteger.
Aos poucos a garota se vê menos humana que seus colegas e o temor de que penda mais para o lado dragão se torna parte da narrativa. Existe esse bate e volta dela querer se encaixar numa sociedade que talvez não a queira da forma que quer: como apenas mais uma garota comum, sendo agora sempre vista como garota dragão.
Mas essa identidade de Ruri como uma jovem é essencial para a obra: podemos sentir uma empatia maior por ela por isso. É uma adolescente que fala de forma realista, num tom natural. É fácil de vê-la como alguém que você conheceria ou até se ver nas ações e falas da garota.
Shindo, o autor, escreveu certa vez num de seus comentários semanais sobre a razão de ter decidido escrever um mangá sobre uma garota. É a série de visual novel Narcissu (2005).
Narcissu conta a história de pacientes de um hospital que cuida de doenças terminais. Os personagens, primariamente garotas, moram na ala mais crítica do local, implicando a certeza de poucos meses de vida. É uma história colocada no subgênero nakige, jogos feitos para chorar.
Porém um dos aspectos mais importantes de Narcissu é justamente que a história por si não é um drama explosivo. Os roteiros são narrados de maneira relativamente simples, primariamente focando em conversas naturais entre os personagens, muitas vezes falando de assuntos diversos banais, como carros ou geografia.
A beleza em Narcissu é justamente a “proteção” do cotidiano e a beleza da simplicidade da vida. Não importa que o futuro pareça sombrio, o ato de viver o presente é belo por si só. É uma história de tom mais positivo do que a premissa implica.
Aqui novamente podemos ver Ruri. A protagonista, antes mais isolada de sua turma, percebe que é o momento de criar vínculos mais fortes com suas colegas de sala. Isso é primariamente feito por conversas num tom bem natural, algo que Shindo disse ser intencional, ele quer que esses adolescentes ajam como tal.
O que motiva Ruri a mudar é, novamente, a idéia de defender a vida comum. Ela não quer ser especial, quer ser apenas mais uma, mas de forma contraditória é forçada a mudar a forma que convive para não ser vista de longe apenas como a estudante com chifres da sala.
Muitos autores, de todo tipo de mídia, sofrem com o diálogo de adolescentes. Soar como um velho tentando imitar crianças automaticamente acaba com a imersão da história, mas Shindo cria conversas num ritmo mais lento que permite que ao mesmo tempo soem naturais e que guiem o roteiro para seus temas principais.
A carreira do jovem autor é também interessante e quase traça um paralelo com essa questão de mudança. Lançando oneshots desde 2016, Shindo era visto como uma das apostas mais certeiras da Jump. Seus trabalhos eram todos battle shonen de muito apelo, com protagonistas legais e cenas de ação eletrizantes. Isso o levou à vitória da Golden Future Cup de 2017 com Joreishi Rentarou no Yakusoku, a história de um homem com poderes de fogo protegendo uma garota de monstros, permitindo que ele publicasse uma série na Weekly Shonen Jump.

No entanto, Joreishi não virou série e em 2018 Shindo voltou com Count Over, um oneshot sobre um jovem espadachim que viaja para os Estados Unidos com a meta de matar todos os fugitivos de uma prisão de segurança máxima. Outra história de ação frenética que também foi bem recebido.
Mesmo com toda essa expectativa, Shindo voltou apenas com uma surpresa em 2020: o oneshot de Ruri Dragon. A história com a premissa simples explodiu nas redes sociais japonesas e o clamor público fez a Jump ter certeza que a série precisava ser parte da revista, a estreando em 2022. O resto é a história que já sabemos.
Apesar de serem bons oneshots, as obras anteriores de Shindo pareciam faltar algum tempero talvez. A ação era boa e os personagens carismáticos, mas os roteiros não davam impressão de serem interessantes o suficiente para uma longa série. É claro, ele poderia adaptar para uma serialização, mas considerando os trabalhos finais que temos, Ruri era uma clara evolução do autor, ainda mantendo seu texto simples e fácil de acompanhar, mas com um pouco mais de profundidade.
Não é de jeito algum crítica à battle shonen como gênero, mas o crescimento de Shindo como autor passa por seu crescimento pessoal. Com elementos de obras tão diferentes como Kuuga, uma história tradicional tokusatsu, Narcissu, uma visual novel dramática, aliando à experiência com battle, Ruri Dragon é um slice of life único na história da Jump, que raramente publica obras do tipo sem o elemento de comédia.
No fim das contas, a maioria absoluta de leitores não deve ter visto Kuuga ou lido Narcissu, mas consegue se ver na jornada de Ruri. Suas mudanças biológicas implicam em mudanças psicológicas também, mudam como Ruri interage com o mundo ao seu redor, sendo assim também uma analogia ao crescimento que todos passamos na adolescência, mas nesse caso ainda mais pertinente ás mudanças que acontecem com garotas.
Sim, ninguém recebe atenção igual Ruri recebe pelos seus chifres ou demais características de dragão, mas ao criar um cenário mais exagerado, é possível chamar atenção para essas questões que todo adolescente está passando por, ou que todo adulto já viveu. É um apelo universal, sentir empatia pela situação da personagem permite que seus desafios diários tenham uma dimensão maior.
Ao despertar seus poderes, Ruri não descobre que precisa enfrentar vilões, nem que tem uma profecia a colocando como heroína predestinada. É uma situação típica de um battle shonen, mas que existe nesse mangá slice of life. O autor tem noção total disso, fazendo uma brincadeira no próprio mangá o comparando com o clássico Dragon Quest Dai no Daibouken (Fly o Pequeno Guerreiro), outro mangá sobre um protagonista que vai aos poucos despertando seu lado dragão, enquanto muda seu comportamento humano.
Os grandes desafios de Ruri são cotidianos: não querer ser alienada socialmente, lidar com o preconceito casual que esconde-se em pequenas interações, o desejo de entender seu próprio corpo e, principalmente, o medo da incerteza, do seu futuro.
Lançado pouco depois do fim dos anos 1990, Kamen Rider Kuuga apresentava um mundo em turbulência em reflexo à sociedade japonesa que vivia uma década perdida economicamente, marcada pela desesperança dos jovens com o futuro. O herói funcionou por não vir com um otimismo que ignorava as razões desses temores, mas uma empatia que os entendia, mas também dava esperança.
Narcissu é uma série sobre pacientes terminais, mas é uma ode à vida. Lançado em 2005, ele vinha pouco depois do indíce de suicídios no Japão ter batido recordes. Os temores nascidos dos anos 90, ainda influenciavam adolescentes e jovens adultos que agora viam uma sociedade mais fechada e alienante. Narcissu soube como pegar esse receio e, por meio de garotas jogando conversa afora, demostrou que a vida vale a pena ser vivida, mesmo se o amanhã não parece o mais brilhante.
Ruri Dragon é herdeiro dessas obras e de inúmeras mais que formaram Shindo como escritor e assim como eles tem seu grande trunfo como sabe dialogar com leitores. Seja uma garota que vê suas experiências de vida na história, assim como um jovem adulto que agora consegue olhar para trás e entender o porquê de pequenas brigas escolares parecerem eventos de dimensão colossal.
A adolescência é uma época de turbulência e entendimento pessoal. Um jovem autor que recentemente passou pelo mesmo crescimento conseguiu pegar um pouquinho de cada parte do quebra cabeça do seu interior e transformou num quadro completo. Simples à primeira vista, mas com uma profundidade interior que fala com muitos.
Sua experiência como um jovem dos anos 2010 e 2020 traz dilemas mais contemporâneos, como a dificuldade de viver em anonimato num mundo cada vez mais interconectado, aonde relações pessoais em ambientes como escolas persistem além do fim das aulas, mas em grupos de conversa e redes sociais também.
Ao mesmo tempo a busca pela normalidade é atemporal. Não importa quais situações estejamos passando, de crises globais aos nossos problemas do dia a dia, tentamos nos adaptar a tudo para desfrutar de uma rotina pacífica, do deleite de um café da manhã.
A busca de Ruri por sua identidade é a continuação de um longo céu azul, mas também uma reinterpretação de idéias que atingem públicos velhos e novos.