Sentai Daishikkaku teve o primeiro episódio de seu anime transmitido e chegou ao trend 1 do Twitter japonês! Excelente, certo? É mais complexo do que parece, mas em meio a elogios pela ótima produção, existem muitas críticas. Explicarei:
Essa é uma polêmica que já abordei antes nas discussões da ToC, então só está sendo revivida e ampliada pelo alcance do anime, mas existe uma crítica vocal sobre a série desrespeitar a franquia Super Sentai. Para quem não conhece, Super Sentai é a série de TV tokusatsu japonesa que inspirou os Power Rangers (na verdade, é quase um licenciamento, regravação e adaptação). A franquia existe desde 1975 e marcou várias gerações, se tornando uma das maiores bases do super heroísmo na cultura popular japonesa – seus valores, designs e conceitos permeiam muito da figura do herói nesse imaginário comum do país.
Então Super Sentai para muitos é visto como algo nobre e ideal, não algo para ser distorcido e desconstruído, até porque todas as novas gerações de crianças acompanham novos times a cada lançamento anual.
Comentários a respeito do mangá Sentai Daishikkaku em várias plataformas online sempre criticaram a brutalidade e maldade dos “rangers” da história, os Dragons Keeper. Na obra, eles controlam a sociedade armando lutas falsas contra os soldados já derrotados do típico exército invasor, assim sendo revelados como mentirosos e violentos para o leitor, que empatiza mais com o protagonista, um vilão que quer acabar com a ordem dos Dragon Keepers e provar que não é apenas um escravo.
Existem cenas de choque mesmo no começo, mas que são incomuns ao longo do mangá, mas foram o suficiente para fazer com que muita gente que quis ler esperando uma história de Sentai se decepcionasse com essa subversão.
Com a estreia do anime mais e mais críticas do tipo aparecem, a maioria vindo de fãs que cresceram com e que ainda acompanham Super Sentai. Algumas só falam de decepção com a história, mas vários se ofendem profundamente e até insultam o autor, Negi Haruba.
Claro, isso não é a recepção total, o espectador casual comum parece deixar mais comentários positivos. O anime tem um excelente valor de produção, com fortes cenas de animação que distorcem e esticam os Dusters (monstros da série) para realçar o humor e sua natureza não humana, a direção é criativa e tem boas ideias para elevar tanto o lado comédia quanto de ação, a trilha sonora é única com algumas músicas que parecem tiradas diretamente de um filme do Tim Burton, e por fim, o trabalho dos dubladores e as escolhas estão excelentes. Tudo isso é comentado e elogiado, até por alguns críticos.
Mesmo assim a polêmica é visível, em algumas plataformas os comentários mais populares são justamente os mais fervorosos em criticar o anime.
Alguns podem estar lendo e se perguntando. “Mas se isso está acontecendo, por que não vimos o mesmo com outras paródias, inclusive de Sentai?” As razões são várias, porém vou listar alguns dos argumentos comuns:
- O uso do nome Sentai no título é visto como uma forma de enganação e roubo da propriedade real. Fãs japoneses são bastante críticos quanto à cópias do tipo, um exemplo que está sendo citado muito no Twitter e fóruns é o mangá Cheat Slayer. Era uma série sobre um protagonista precisando enfrentar paródias de heróis de isekai e outras séries de fantasia/MMO, mas os designs deixavam óbvias as inspirações, tinha o Kirito de Sword Art Online, Aqua de Konosuba, etc. Fãs dessas séries ODIARAM o conceito e criticaram demais o mangá por roubar os designs desses personagens para os distorcer. A editora viu a repercussão e cancelou Cheat Slayer com apenas um capítulo.
- A história usa o conceito de Super Sentai como programa de TV como um foco da narrativa. Os Dragon Keepers fazem um programa semanal que passa aos domingos de manhã no qual derrotam o monstro da semana enquanto milhares de crianças os assistem – isso tudo é uma farsa para esconder a perversidade da organização na história, mas é remetente ao programa tokusatsu e muitos de seus fãs acham desrespeitoso.
- Por ser uma série da Shonen Magazine, chama mais a atenção, afinal é a segunda maior revista do Japão. Além disso, sua demografia envolve garotos adolescentes e até algumas crianças, o público-alvo de Super Sentai.
- E por fim, muitos encaram o mangá como uma crítica direta ao Super Sentai, como se o autor Negi Haruba desgostasse da franquia. Outras paródias como o mangá e anime Tentai Senshi Sunred e o tokusatsu adulto Akibaranger são vistos mais como homenagens carinhosas de fãs do material original e não críticas que tomam o nome da lendária série.
Aviso de leves spoilers agora em relação a Sentai Daishikkaku após a imagem.
Isso infelizmente, não é bem a verdade, mas é algo que a história aborda gradualmente ao explorar cada um dos Dragon Keepers. Apesar do começo chocante, a maioria dos heróis realmente lutam pela justiça e tem mais nuance. A série é SIM uma homenagem ao Super Sentai que só pode ter sido feita por alguém que aprecia a franquia o suficiente para trazer uma perspectiva diferente sobre ela, enquanto louva suas bases originais, mesmo que traçando um caminho diferente para chegar até lá.
Narrativamente é uma decisão mais interessante e que deixa a progressão do roteiro mais divertida. Não é só uma história “edgy”, existe um contexto legal para tudo ali. Mas comercialmente, realmente pode ter sido uma escolha que afastou talvez um dos públicos-alvo principais do mangá e o mesmo pode ocorrer com o anime.
É até visto um ponto como propaganda enganosa por alguns, já que os Sentai, com visuais belíssimos, ocupam as capas e maioria dos materiais promocionais, mas o protagonista é apenas um soldado do exército dos monstros.
Contudo não tomem isso como algo próprio dos japoneses ou que algo assim só ocorreria lá. Subversões de superheróis clássicos da DC e da Marvel, por exemplo, são extremamente controversos entre leitores de quadrinhos e até seus criadores. Algumas histórias clássicas como “What’s so Funny about Truth, Justice & the American Way?” do Superman por Joe Kelly e “Kingdom Come” de Alex Ross são quase cartas protesto à distorção de ícones do heroísmo, algo comuns nos quadrinhos dos anos 1990 que trouxeram mais violência e moralidade cinza às editoras americanas de HQ. Outro e talvez maior exemplo é o famoso e renomado escritor Alan Moore, que quase se culpa pela criação dessa era de “subversão” dos personagens por ter criado histórias mais sombrias como “Watchmen” e “Piada Mortal” – assim ele fala que a mídia deveria retornar às histórias mias surreais e otimistas das eras passadas.
Essa polêmica foi até aos filmes, com muitos apontando isso como motivo para fracasso do universo cinemático da DC, considerado mais subversivo aos quadrinhos e caracterizações originais dos personagens clássicos.
A paixão das pessoas por algo pode fazer com que resistam mais fortemente à ideias que achem subversivas demais ao que amam. Brasileiros podem ver isso até no futebol, com torcedores protestando contra camisas com cores não tradicionais ou mudanças de escudo, por exemplo. O Japão em si obviamente não é contra paródias culturalmente, o pai do battle shonen moderno é Kinnikuman, um mangá que começa como uma paródia clara ao herói tokusatsu Ultraman e que ainda faz referências a personagens como Spiderman e Batman.
Entretanto, assim como outros países a subversão ser vista como feita por alguém desrespeitando o original e/ou tentando tomar o seu lugar será polêmica e, infelizmente, muitos encaram Sentai Daishikkaku dessa forma, ainda mais vindo de um autor tão famoso e popular como Negi Haruba após ter criado o megahit Gotoubun no Hanayome.
Não se deixem enganar, se forem mais a fundo verão que existem sim fãs de quadrinhos vocais sobre desgostarem da série The Boys, mas os quadrinhos americanos não possuem mais tanta força quanto no passado para mobilizar uma crítica vocal online. Super Sentai no entanto é constantemente popular e onipresente na cultura popular japonesa por basicamente meio século, então mesmo que sejam só alguns fãs, o número e força vocal deles é bem maior.
Agora é ver se a polêmica até pode ajudar entai Daishikkaku a se tornar reconhecível. Um dos problemas principais do mangá são suas baixíssimas vendas para o padrão da revista, abaixo de 20 mil por mês por novo volume, e ao menos ter seu nome reconhecido ao conquistar o número 1 dos trends já é algo importante.
E apesar de tudo, é um anime de qualidade que ainda recebe muitos elogios. Não dá para generalizar toda recepção de um público tão grande como os espectadores de anime, que tem vários nichos e gostos diferentes. O que pode desagradar um pode ser justamente o que outro quer ver, é como diz o ditado:
Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.