Um ledo engano
Por um total acaso, um simples, banal e infeliz acidente de percurso, a nossa querida Weekly Shonen Jump cometeu mais um de seus terríveis enganos. Não costuma ser tão frequente, afinal, a maior revista de mangás do mundo tende a manter uma constância, e seus pequenos vacilos são, geralmente, pequenos. Mas vez ou outra eles acontecem, e quando acontecem, o natural do ser humano é aplicar sua crueldade desmedida, o prazer em destacar os pequenos erros, ignorar a boa regularidade para logo apontar hipocrisias, incoerências, provar que aquele carinha que costuma acertar tanto, finalmente errou. Tá lá, peguei o safado no pulo.
Ao longo de um 2025 tão regular e de fracassos certeiros, a Shonen Jump finalmente perpetrou mais um de seus acidentes anuais, a maior fatalidade possível… o controverso lançamento de uma boa história. Não é fácil acreditar, e quando avistamos esse erro, desconfiamos de sua mera existência, uma instantânea incredulidade. Pera, esse negócio é bom mesmo? Tem como dar certo? Isso vai durar? Mas vai vender? Saindo na Jump? Tem certeza que o povo vai gostar disso? A desconfiança inevitavelmente toma conta.
O maior e melhor site na cobertura de quadrinhos japoneses – não me faça esclarecer o óbvio, você já se encontra nele – segue lotado de artigos que destrincham vendas, descrevem recepções, apresentam retrospectivas, analisam TOCs, que, obviamente, servem como boas projeções para uma melhor visualização do breve futuro de seus mangás. Ou seja, cobrimos bem o passado, presente e futuro.
O que falta, afinal, é a discussão de histórias, pelas histórias. Estamos devendo no departamento do olhar minucioso, da atenção àquilo que realmente nos cativa, nada mais nada menos do que os mangás. Parece óbvio, mas as introduções precisam ser óbvias para despertar os mais desatentos, e chegou o momento de analisar o principal erro da Shonen Jump no ano, que, tão acostumada com o corriqueiro lançamento de tranqueiras, histórias que te fazem duvidar do profissionalismo editorial, da sanidade mental de seus idealizadores e da paciência de seus leitores, que mesmo rodeada de tantos outros desastres, surge discretamente, permanece discreto, mas tão coerente com sua exata proposta, apresenta uma série de sutilezas que necessitam de um olhar mais atento; afinal, como diria Thomas Hobbes, o homem nasce engraçado, e a sociedade o corrompe.
Como ser engraçado
Não existe gênero ficcional mais complexo, variável e convoluto do que a Comédia. Talvez o Terror seja equiparável, mas esse sofre um pouco mais de resistência e aparece com uma frequência bem reduzida ao longo do nosso dia a dia. Um desejamos, o outro evitamos. A comédia consegue ser capaz de penetrar diversos campos da vida, saindo do mais casual, até a possibilidade de alcançar o mais profissional. Comprovamos sua superioridade nessa simples observação.
Raros são os casos onde ser engraçado configura um problema; tirando a indelicadeza e a falta de tato diante de situações sensíveis, a comédia e o riso parecem estar sempre bem-vindos. Pior, até mesmo em situações indevidas, a comédia parece ganhar força dobrada, justamente pela intensificação de um dos elementos que mais edificam a comédia: a imprevisibilidade. Rir daquilo que não devemos rir também acaba sendo extremamente engraçado. Parece até que o destino do ser humano é fazer graça de tudo aquilo que seu meio social permitir, e, para alguns, proporcionar esse rompimento dentro do seu meio social acaba sendo ainda mais hilário.
Então, afinal, por que rimos? O que configura o engraçado e o não engraçado? A resposta mais supérflua e preguiçosa acaba sendo a de sempre: ‘’depende né, é subjetivo’’. É certamente preguiçosa, mas ninguém vai negar que, no fundo, funciona exatamente desta forma: tudo vai depender. Mas o que será que não depende na vida? Podemos muito bem analisar além da superficialidade e certamente somos capazes de observar que certas subjetividades se acumulam de tal forma que seu consenso forma uma espécie de objetividade, e podemos observar isso muito claramente através da história, já que a tentativa de objetificar a comédia e o riso não parece ser grande novidade.
Nosso camarada Aristóteles já fazia suas ponderações sobre o tema lá na Grécia Antiga; afinal, no mundo ocidental, a comédia nasce justamente dentro do teatro grego. No século XIX, já temos filósofos como Henri Bergson esmiuçando as peculiaridades do riso; Kant e Kierkegaard também deixaram importantes textos sobre a temática. Ou seja, quando você vai descobrindo que um monte de velho careca que se autointitulavam filósofos, e que um monte de espertalhão lê para poder entender o que os outros espertalhões estão falando, quando observamos que eles estavam justamente tentando explicar o que causa o riso e o que seria a comédia, você percebe que o tema não é pouca bosta.
Mas ei, muito cuidado, essa é uma abordagem ocidental para a comédia, e estamos aqui falando de uma peça artística oriental, que trabalha e opera através de outros mecanismos culturais. Até que ponto seria útil pensar a comédia japonesa, com suas peculiaridades, através de uma mentalidade tão distante? Pouco aproveitável, mas não totalmente descartável.
No ocidente, temos o stand-up, um espetáculo de um único homem se apresentando para um público amplo, contando histórias e soltando piadas que variam de forma e temática. Essa variante não é comum no Japão, onde o tipo de humor estruturado mais convencional são o Rakugo e o Manzai; o Rakugo você já conhece, basta ler Akane Banashi; o Manzai você muito provavelmente também conhece, onde temos uma dupla com um Boke (idiota) se metendo e falando bobagens, sendo corrigido por um Tsukkomi (esperto), o parceiro sério que intervém nas idiotices.
A crítica ácida de viés político-social aparece com muito mais evidência no ocidente do que no oriente, enquanto o humor nonsense de desenvolvimentos surreais é muito mais relevante no cenário da comédia japonesa. O distanciamento é claro: a comédia japonesa não é a ‘’nossa comédia’’, e parte do charme está justamente nessa constatação. Claro que essa não é uma visão hegemônica; a tendência mesmo é a de procurar no outro algo semelhante ao nosso, por isso que comédias românticas e comédias com ação fazem 5x mais sucesso por aqui do que comédias nonsense.
O que torna a mídia mangá tão encantadora para o não japonês é justamente esse distanciamento: perceber que estamos lendo algo que não é do nosso jeito. A experiência e relação que temos com obras japonesas não é a experiência que um japonês tem com uma obra japonesa. Mas agora, faz sentido ser tão pouco sutil analisando uma obra que se sustenta através da sua sutileza? Será que saí do tópico para ficar divagando um monte de conhecimento antropológico básico? Não nego, mas precisamos dessa retomada mental para buscarmos a resposta que Someone Hertz tanto busca.
Apesar das principais diferenças culturais, temos um claro ponto em comum: somos todos fascinados pelo riso, amamos comédia, queremos dar risada, queremos causar risada, queremos ser engraçados. Tanto aqui, quanto lá, de diferentes formas, buscamos sempre o cômico; afinal, ser engraçado é a coisa mais descolada possível.
Comédia, tudo igual?
Nosso protagonista Mimei Fukumori é um estudante aplicado e competente em diversas áreas de sua vida, bom atleticamente, bom intelectualmente, mas não consegue ser a coisa mais importante da vida de todo jovem estudante: ser engraçado. O garoto é viciado num popular talk-show antelucano de comédia, que funciona na seguinte dinâmica: toda semana, um cenário hipotético é descrito pelos hosts do programa; os ouvintes devem responder de forma criativa e engraçada ao cenário; os melhores textos são selecionados e lidos durante o programa.
Engraçado? Talvez, depende, como você preguiçosamente pode insistir. Mas calma, teremos tempo para destacar as peculiaridades de Someone Hertz com justiça; mas antes disso, recorro uma última vez às listagens. Sério, é a última vez, tenha paciênciam, siga-me em mais uma invenção classificatória. Podemos classificar as comédias por seus tipos:
Comédia nonsense – Um clássico japonês, a loucura corre solta sem motivo claro, as coisas acontecem de forma surreal e sem nenhum encadeamento lógico; a graça se encontra na quebra de expectativa e total imprevisibilidade. O absurdo pode ser totalmente absurdesco ou pode também começar como uma situação real, partindo para uma resolução maluca, mas vai sempre terminar em bizarria.
Comédias manzai – Outro clássico japonês, com o contraste do sério/idiota em situações diversas.
Comédia ácida – Centrada na crítica social, ironizando circunstâncias e problemas de cunho político-social.
Comédia vexatória – A graça está nas pancadas, nos apelidos, no constrangimento causado e sofrido.
Agora, lembram da palavra usada no começo do texto? “Convoluto”. Não usei-a só por ser uma palavra chique (claro que eu também usei pra isso), mas usei principalmente porque ela é a palavra mais apropriada: convoluto é aquilo enrolado sobre si ou em volta de algo. Legal e chique, né? Não existe comédia que é só uma coisa; ela incorpora todos os tipos de forma totalmente variável. Como seria definir Gintama ou Witch Watch nesse meu esquema ridículo? Witch Watch consegue ser nonsense em um momento e sério no outro; o Morihito consegue ser o cara posturado ao mesmo tempo que consegue ser o idiota em destaque; a série consegue ter lutas e romance no mesmo capítulo; é uma salada de fruta terrível (das boas).
Então, pra que serviu mesmo listar “tipos” se, no final das contas, toda comédia incorpora um ou mais “tipos” em diferentes níveis? Para alongar o texto e fazer vocês desistirem de lê-lo até o final? Não, fiz isso porque existe um grau de doçura tão agudo em Someone Hertz, que, para apreciá-lo, só treinando o paladar com diversos sabores. Aquilo que permite sua história ser algo delicadamente único dentro do tão disputado ambiente da comédia seria o seu ”tipo” raro de comédia: “sutilmente engraçada, naturalmente fofa”.
A gentil arte de fazer comédia
O que Someone Hertz entrega, amigos, é de uma sutileza totalmente única. Não existe outra palavra para definir que não essa: sutileza. O elemento de comédia nonsense é dosado, a comédia agressiva com chutes e tapas, inexistente, a comédia ácida também não está presente; ficamos com elementos de comédia romântica e do manzai, combinação clássica e simples. Bem, fosse só isso, a série seria mais uma na fila do pão, um mangá ordinário, mas o crucial elemento da sutileza transforma essa estrutura de carbono em um belíssimo diamante.
Kurage, nossa coprotagonista, é o objetivo do nosso protagonista; se ser engraçado é a meta, queremos parecer com a pessoa mais engraçada em cena, queremos ser como a Batatinha-enguia. Kurage não se esforça para ser engraçada, ela é; ser simplesmente engraçada é ser Kurage, quase como por natureza. Você deve conhecer pelo menos uma pessoa na sua vida desse jeito, sempre engraçada, e que parece estar pronta para ser engraçada em qualquer situação.
Certas pessoas são assim, nascem com talento. Mas aí temos aquele dilema do CR7 X Messi, Rock Lee x Gaara, Vasco x Flamengo: como o esforço pode derrotar o talento? E será que o talento de fato existe, ou ele na verdade é mais uma forma de esforço inconsciente? Existe o gene da comédia? Ele é recessivo ou dominante?
Someone Hertz acaba sendo sutil tanto quanto gentil. Não temos uma comédia de constrangimento ou vergonha em um nível vexatório; tudo que nossa pequena Kurage apronta parte de trocadilhos bobos, referências populares – tática perfeita pra deixar qualquer otakinho emocionado – e observações inusitadas. Sua quadrinização prioriza o enfoque no rosto dos personagens, principalmente de Kurage, que parece inúmeras vezes com a cara colada nos quadros, quase como se estivesse com o rosto em cima de uma câmera. Essa decisão serve tanto para demonstrar o senso de distância que Kurage tem com os outros, quanto para destacar o mais importante: sua fofura desmedida.
A fofura de Someone Hertz é um dos principais elementos do seu sucesso, com uma comédia tão discreta, a fofura aparece escancarada, é ela o fermento que transforma a massa. Sua história pode não ter uma quadrinização extremamente inventiva, mas entrega uma bem inteligente, que compensa bem sua “fraqueza” no desenho simples, através de uma série de recursos que esbanjam leveza e personalidade. Mas claro, se o departamento de desenho e quadrinização são simplesmente funcionais, a parte da escrita ganha espaço para se superar e compensar todo o resto.
Someone Hertz é uma obra delicadamente confeccionada, que retrata a casualidade do dia a dia e a capacidade de criar laços afetivos através do humor. São piadas bobas de bate e volta que você tem com aquele amigo que adora te provocar, e que você adora devolver a provocação. Aqui, porém, a crescente tensão romântica entre os dois jovens aplica um grau de intimidade ainda mais divertido de ser acompanhado.
Ser capaz de se aproximar dos outros, tornar-se visível, explorar os limites de sua capacidade artística através do riso casual, da leve e pequena esboçada de canto de boa, é uma comédia que não quer ser uma comédia puramente tradicional, mas uma comédia discretamente diferente, é a sagaz diferença que torna a série tão atrativa para um público tão anestesiado pela normalidade. Não tenta inventar a roda, mas não aceita ser medíocre.
Calmamente, tranquilamente, sutilmente, Someone Hertz te diverte, trabalhando com uma comédia inexplorada por outras obras, sendo algo sutilmente inédito no seu meio, muitas vezes sem te causar uma gargalhada firme, mas o sentimento transposto não precisa ser sempre escandaloso; você não se diverte só quando se caga de rir; às vezes uma simples piada casual satisfaz sua amargura e amacia o seu dia, uma boa sequência de pequenos 😊 satisfaz tão bem como um grande 😂
O crescimento conjunto de dois jovens adolescentes que compartilham do mesmo hobby idealiza de forma linda a juventude escolar, a capacidade de crescimento conjunto, o florescer de uma nova paixão, que eu, pobre coitado, amargurado e mau-educado, jamais vivi; e claro, como é bom observar na arte aquilo que nos é tão distante.
Com sua escrita despretensiosa, tranquila e acalentadora, Someone Hertz desenvolve um microcosmo da comédia que permeia o cotidiano de todos nós, tão presente e tão pouco representado, indo na contramão da urgência por grandiosidade; sua rota é a da calmaria, é a representação daquele vídeo fofinho de gatinho pulando e se arranhando; não sendo você um psicopata, não vai te proporcionar grandes risadas, mas o leve sorriso seguido pelo sentimento tranquilizador, na longa duração, será maravilhosamente equivalente. Agora, você vai gostar da obra, vai achar realmente engraçado? Claro que depende, mas não só.











