Com a declaração de Kazuhiko Torishima na Japan Expo 2025, uma antiga e já bem difundida discussão sobre uma possível rivalidade entre Torishima e Oda ressurgiu. Verdades, sensacionalismos e inverdades se entrelçaram em uma grande “sopa de informação”, tornando ainda mais complexo compreender o que de fato ocorreu. Neste artigo, o Analyse It explicará para vocês toda a trajetória desse embate editorial, além de desmentir as principais fake news relacionadas a essa “polêmica” que circula no universo dos mangás há diversos anos.
Antes de adentrarmos os fatos, convém relembrar quem são Torishima e Oda:
Nascido em 1952, Torishima tornou-se editor da Weekly Shonen Jump em 1976, no mesmo ano em que se graduou. Ele é amplamente reconhecido por ter sido o primeiro editor de Akira Toriyama, acompanhando o autor durante toda a publicação de Dr. Slump e no início de Dragon Ball. Desde então, ganhou notoriedade por sua reputação de “editor severo”, justamente por ser extremamente exigente com Toriyama.
De fato, é inegável que o êxito tanto de Dragon Ball quanto de Dr. Slump teve grande contribuição de Kazuhiko Torishima. Foi ele quem persuadiu Akira Toriyama a abandonar a ideia de ter o Doutor Slump como protagonista da obra, substituindo-o pela Arale. Além disso, foi responsável por incentivar o aumento das cenas de ação em Dragon Ball, propondo o famoso torneio “Budokai Tenkaichi”.
Kazuhiko TorishimaEmbora não tenha obtido grande sucesso com outros autores da revista, os resultados extraordinários alcançados com Dragon Ball e Dr. Slump levaram Torishima a participar de projetos de grande relevância, como o primeiro jogo da franquia Dragon Quest, a criação da revista V-Jump e, posteriormente, em 1996, sua nomeação como Editor-Chefe da Weekly Shonen Jump.
Durante sua gestão, entre 1996 e 2001, ele promoveu uma ampla reestruturação editorial, sendo figura-chave na superação da crise que assolava a revista na época.
Torishima autorizou a publicação de obras como Hoshin Engi, Yu-Gi-Oh, I”S, Naruto, Prince of Tennis, Hikaru no Go, Hunter x Hunter, Rookies, Shaman King e, não podemos esquecer, One Piece, de autoria de Eiichiro Oda.
One Piece, que viria a se tornar o maior sucesso comercial da história dos mangás e, para muitos, uma das melhores obras de todos os tempos. Embora seu sucesso seja inquestionável, Oda teve de enfrentar muitos obstáculos para que sua série fosse finalmente publicada, sendo o principal deles a resistência do próprio Torishima.
POLÊMICA 1: TORISHIMA BARROU ONE PIECE
Romance Dawn, One-Shot de One Piece
Em 4 de agosto de 1996, Oda publicou a primeira versão de One Piece, ainda intitulada Romance Dawn. Divulgado na Summer Edition da Weekly Shonen Jump, o one-shot foi bem recebido. No mês seguinte, uma nova versão, também intitulada Romance Dawn, foi lançada na edição normal da Weekly Shonen Jump. Ambas as versões haviam diferenças significativas em relação ao capítulo inaugural da série.
One Piece só viria a ser oficialmente serializado em julho de 1997, quase um ano depois do primeiro one-shot – um intervalo que, em termos editoriais, pode ser considerado relativamente breve. Na serialização definitiva, abandonou-se a ideia de começar com uma aventura e optou por introduzir a infância de Luffy, uma mudança que teve como objetivo melhorar a história da série. Durante anos, especulou-se que essa mudança teria ocorrido devido à intervenção direta do Torishima. Essa teoria nasceu, pois segundo Takanori Asada, editor de Oda na época, em entrevista à rádio TBS em 2018, a serialização teria sido rejeitada três vezes antes de finalmente ser aprovada.
Antes de examinarmos a influência de Torishima, é importante esclarecer um aspecto fundamental: o Editor-Chefe não acompanha diretamente os autores da revista. Seu papel é mais voltado à orientação dos editores do departamento, além de tomar as principais decisões referentes ao próprio departamento. A responsabilidade de acompanhar continuamente o autor cabe ao editor responsável daquele autor, que, no caso de Oda, era Takanori Asada.
É equivocada, portanto, a crença de que Torishima tenha sido o responsável por todas as mudanças no one-shot e no primeiro capítulo da série. Foi Asada quem, por exemplo, sugeriu que Shanks perdesse o braço. A alteração de estrutura, abandonando o início em meio a uma aventura e optando por uma narrativa retrospectiva, foi uma decisão coletiva do departamento editorial, com Asada, em seguida, conduzindo Oda nesse processo.
Asada revelou que a mudança se deu após a terceira rejeição e que já se encontrava esgotado com as reprovações. Em sua emblemática entrevista, declarou: “Tive um sonho em que batia em todos que estavam participando da reunião, sentindo-me frustrado, machucado e odiado”.
Takanori AsadaMas Torishima rejeitou One Piece apenas por causa de sua história ou tiveram outros motivos? Segundo declarações do próprio Torishima na Japan Expo 2025, o problema não estava no mundo, nos personagens ou na qualidade da trama, mas sim na sua quadrinização: no uso de balões, onomatopeias e na distribuição dos quadros. Torishima afirmou que recusou One Piece inicialmente e recomendou uma reestruturação visual para torná-lo mais acessível ao público infantil.
O protagonista elástico, aliás, também gerava dúvidas entre os editores, sendo considerado pouco atrativo ao gosto japonês.
O ex-editor de Dragon Ball confirmou, ainda em 2019, a versão de Asada, relatando que a equipe editorial estava dividida quanto ao potencial de One Piece. Foi justamente essa divisão, juntamente com a nova versão do primeiro capítulo, que levou Torishima a aprovar a série, após três reprovações (provavelmente com versões distintas da “aventura inicial” a cada nova tentativa). A prática de aprovar obras que geram discussões positivas internas não é incomum no setor editorial e tampouco exclusiva de sua gestão.
O atual Editor-Chefe da Weekly Shonen Jump, Yu Saito, revelou que é uma política tradicional do departamento aprovar séries que provocam dúvidas entre os editores. Quando não há consenso, a orientação é deixar que o público decida. No caso de One Piece, os editores seniores Ibaraki e Sasaki, que futuramente também se tornariam editores-chefes, foram os principais defensores do lançamento de One Piece, de acordo com Asada.
Segue abaixo a tradução da declaração de Kazuhiko Torishima na Japan Expo 2025 (a entrevista da France Info completa e traduzida em português pode ser lida no site Kami-Sama Explorer, que recomendo fortemente):
“Então, atenção, prefiro avisar: não tive problema com a história de One Piece ou com seus personagens. Os personagens eram divertidos e, sinceramente, achei o mangá muito bom, mas havia falhas técnicas na forma como o universo era apresentado. Acho que, estruturalmente falando, naquela época, não havia uma diagramação que permitisse às crianças entender o que estava acontecendo. Basicamente, eu disse a ele que, se não consertássemos isso, o que ele queria transmitir não seria compreendido pelas crianças. Eu apenas pedi que ele consertasse isso, e foi muito difícil de fazer.
Tivemos um debate dentro da editora para saber se deveríamos tentar, para ver se daria certo, se ele realmente conseguiria corrigir suas falhas para poder lançá-la. Debatemos isso por duas horas e estávamos realmente divididos em dois grupos na redação. Como resultado, como não conseguíamos decidir, mas estávamos realmente divididos, deduzi que havia potencial e, então, decidi, naquele momento, que a série precisava ser publicada. Foi assim que aconteceu.”
Contudo, essa não é a única controvérsia envolvendo Torishima e Oda. Existe uma segunda questão igualmente comentada.
POLÊMICA 2: TORISHIMA CRITICOU PUBLICAMENTE OS EDITORES DE ODA
One Piece, Capítulo 1145Como já é de conhecimento público, Oda, uma figura notoriamente reservada, jamais comentou qualquer aspecto relacionado a Torishima ou respondeu a suas críticas. Por isso, nesta segunda polêmica, temos apenas o depoimento de Torishima e a repercussão pública (Praticamente uma discussão de um lado só). Em 2023, ele declarou que os editores de One Piece haviam perdido o controle sobre Oda, temendo contrariar o autor.
A declaração causou bastante alvoroço. Muitos leitores defenderam a liberdade artística do mangaká. Outros concordaram com Torishima, alegando que One Piece havia se tornado excessivamente denso e difícil de acompanhar. A repercussão foi tão intensa que, durante a Japan Expo 2025, Torishima voltou ao tema:
Você acha que o trabalho dele evoluiu para melhor ao longo do tempo?
“Na época, pensei que as coisas tinham melhorado, mas depois pioraram. Acho que o editor dele não consegue mais lhe dizer as coisas. O autor venceu o editor.”
No fundo, tudo retorna à questão da diagramação e quadrinização. A crítica principal de Torishima diz respeito à ausência de crítica editorial a quadrinização da obra. Sua observação reacendeu o debate, com parte dos leitores concordando (alegando que há excesso de informações e balões nos capítulos atuais) e outros defendendo que os dois últimos arcos foram os melhores da série. É inegável que, gradualmente, ao longo da serialização, One Piece aumentou o número de balões e quadros por páginas, mas o quanto este aumento está influênciando na popularidade do mangá (positivamente ou negativamente) não podemos calcular.
Editores e autores veteranos acreditam que, de fato, esse aumento prejudica a leitura de One Piece, por isso a visão do Kazuhiko Torishima não é exclusiva. Outros acreditam que esse aumento seja necessário para o avanço da história, criando assim um ritmo mais acelerado, necessário para a série terminar nos próximos anos.
A visão de Torishima é a de um editor veterano, com profundo conhecimento do mercado e um histórico de sucessos. Contudo, isso não a torna irrefutável, pois não se tem provas que o seu editor não esteja avisando o Oda sobre a quadrinização, o seu editor pode estar concordando com a mudança. One Piece, afinal, continua sendo o mangá mais vendido da atualidade, ultrapassando 1 milhão de cópias por volume nos lançamentos recentes. Os números de One Piece não invalidam a crítica de Torishima, mas sua experiência também não a torna uma verdade incontestável.
A realidade é que essa polêmica decorre de diferentes interpretações sobre a obra e a relação entre editor-autor. Haverá leitores que concordarão com à análise de Torishima, e outros que não concordarão, como é natural que seja. O mais importante é perceber que esta controvérsia está longe de ser tão grave quanto muitos sugerem.
