
Kimetsu no Yaiba (Demon Slayer), escrito e desenhado pelo Gotouge, alcançou a marca de 220 milhões de cópias em circulação, tornando-se, assim, o quarto mangá mais “vendido” da história da Weekly Shonen Jump e o sétimo considerando todas as editoras. Nada mais oportuno do que aproveitarmos este momento de recordes e o lançamento do novo filme para refletirmos sobre O Legado de Kimetsu no Yaiba, e como a série, mesmo cinco anos após sua conclusão, continua sendo o centro de numerosas discussões no Japão.
Esta análise estará centrada no mercado japonês, dado que o impacto internacional de Kimetsu no Yaiba difere significativamente. Além disso, não se pretende aqui emitir um juízo de valor sobre a qualidade da obra (algo que, nas discussões ocidentais, frequentemente se torna o foco) ou gosto pessoal, mas sim oferecer uma visão comercial e sociocultural sobre o legado e a longevidade do sucesso do mangá, cinco anos após o seu término.
KIMETSU NO YAIBA ANTES DO EPISÓDIO 19
Gráfico de vendas dos volumes de Kimetsu no Yaiba entre 2016 e 2019
Muitos, enganados por narrativas simplificadas que circulam na internet, acreditam que Kimetsu no Yaiba saltou de 20 mil cópias para 5 milhões por volume após o Episódio 19 do anime. Trata-se de uma visão que ignora a complexidade da trajetória da obra, a qual passou por diversas “explosões de vendas”, duplicando ou até triplicando seus números a cada novo impulso, sendo o impulso do Episódio 19 o mais marcante. Para compreender adequadamente sua jornada e seu legado, é necessário observar essas diversas “ignições” ao longo do tempo.
Kimetsu no Yaiba estreou na Weekly Shonen Jump em 2016 e, embora tenha sido bem recebido em fóruns, leitores offline da revista e na internet em geral, enfrentava sérias dificuldades para atingir bons números de vendas, por sua dificuldade em atingir o público mais casual, muitas vezes não-leitor da revista. Seus três primeiros volumes venderam menos de 30 mil cópias cada, o que colocava a série em uma situação complicada. À época, formou-se, especialmente no fórum 2ch, um movimento expressivo de leitores dedicados à missão de “salvar a série”.
Entre os chamados “SUPER-FÃS” da Weekly Shonen Jump (Online e Offline), Kimetsu no Yaiba era constantemente considerado o melhor mangá da semana, liderando diversas votações. Contudo, agradar a este nicho não era suficiente. O motivo pelo qual conseguia agradar tanto esses leitores “Super-Fãs”? A ambientação histórica e o tom mais sombrio da obra destoavam significativamente das produções da revista, que normalmente tratavam de temas mais leves e descontraídos. Naquele momento, o mangá era visto como “diferente”; retrospectivamente, pode-se afirmar que ele representava o início do retorno dos battle shounen mais obscuros como eixo central da indústria de mangás.
Muito se especula que Kimetsu no Yaiba esteve próximo de ser cancelado. É provável que, caso a série continuasse vendendo cerca de 20 mil cópias por volume após o volume seis ou sete, haveria um risco real de cancelamento. No entanto, a recepção positiva por parte dos chamados “Super-Fãs” sempre garantiu à obra uma acolhida favorável – desde os primeiros dois capítulos, como confirmado pelo editor da série, Tatsuhiko Katayama -. Além disso, conforme explicado pelo editor-chefe da Weekly Shonen Jump, Yu Saito, em entrevista que traduzimos e publicamos em nosso Patreon, a votação de popularidade dos leitores sempre terá prioridade sobre os números de vendas.
“Tanto o primeiro quanto o segundo capítulo do mangá foram bem recebidos. As pessoas costumam dizer que estávamos à beira do cancelamento, mas não houve essa crise. Acredito que Kimetsu no Yaiba só é possível graças aos leitores que nos apoiaram desde então.
Em termos de popularidade geral offline, foi tão popular que ganhou uma primeira página colorida no seu sétimo capítulo, o que é muito raro e só acontece com séries muito populares. Gotouge-sensei ficou totalmente chocado e decidiu fazer a ilustração à pressa naquele momento” – Tatsuhiko Katayama, Editor de Kimetsu no Yaiba.
A mudança na recepção do público japonês ocorreu apenas em 2017, com o lançamento do quinto volume, quando a série atingiu o feito impressionante de triplicar suas vendas. A combinação de um arco narrativo impactante (justamente o mesmo arco do Episódio 19) com a recomendação do diretor do estúdio Ufotable levou novos leitores da Weekly Shonen Jump, que antes desconsideravam a obra, a buscar os volumes anteriores. A série, que sobrevivia até então graças à intensa votação de seus “super-fãs”, passou a conquistar um público mais amplo.
Desse ponto em diante, observou-se um crescimento contínuo nas vendas, chegando a aproximadamente 150 mil cópias por volume antes mesmo da estreia do anime (quantidade levemente inferior a Jujutsu Kaisen antes do anime e superior a Sakamoto Days e Ao no Hako). À época, esse já era um resultado bastante promissor para uma obra ainda sem adaptação animada – ao ponto de o site Analyse It, entre outros especializados, prever que o mangá se tornaria um dos pilares da Jump, com potencial para ultrapassar 500 mil cópias por volume -. Embora ainda desconhecida do grande público, a obra já possuía um nicho fiel entre os leitores de mangás.
Em fevereiro de 2019, a série começou a indicar que a previsão de se tornar um “pilar” estava apenas parcialmente correta. Poucos dias antes da estreia do anime, Kimetsu no Yaiba começou a subir vertiginosamente no Ranking Shoseki, que acompanha as vendas diárias de mangás. Um grande entusiasmo se formava em torno da adaptação da Ufotable, expectativa que se traduziu em resultados imediatos com a estreia do anime.
Ainda pouco conhecida no Ocidente – onde obras geralmente ganham notoriedade apenas após adaptações em anime -, Kimetsu no Yaiba já era tema central em comunidades japonesas de anime e mangá. Com a estreia do anime, o público japonês começou a especular se a obra poderia ultrapassar a marca de 1 milhão de cópias por volume. O dobro do que se projetava. Mal se imaginava que, após o Episódio 19, a obra explodiria ainda mais em popularidade, tornando-se um verdadeiro fenômeno viral, um dos maiores da história dos mangás.
Outros impulsos sucederam o Episódio 19: A viralização da música de abertura (se tornando a canção mais ouvida no Japão), o lançamento do filme “Kimetsu no Yaiba: Mugen Train” e a conclusão da obra em 2020, criaram mais “ignições” que levaram Kimetsu no Yaiba a vender 6 milhões de cópias no volume 23, o último da série.
O FENÔMENO KIMETSU NO YAIBA
Venda do último volume de Kimetsu no Yaiba durante a Pandemia
Com a chegada do anime, a obra se tornou um fenômeno cultural de proporções gigantescas no Japão. Sua qualidade técnica atraiu um público amplo, que não apenas assistiu ao anime e ao filme, mas também impulsionou as vendas do mangá. É importante destacar que a série conseguiu vender 23 volumes com recordes históricos – um deles ultrapassando 6 milhões de cópias no Ranking Oricon, feito inédito desde a criação do ranking. O público não apenas se encantou com o anime (a “porta de entrada”), mas também passou a consumir avidamente o mangá, motivando centenas de artigos jornalísticos e acadêmicos que analisam os elementos que alicerçaram seu sucesso.
Como isso foi possível? Os temas universais explorados pela obra – especialmente a relação fraterna entre Tanjirou e Nezuko – e a ambientação histórica na Era Meiji despertaram o interesse de pessoas de diferentes idades. Segundo o respeitado portal “Seniorad Marketing”, Kimetsu no Yaiba quebrou paradigmas ao ressoar com leitores mais velhos. Idosos que nunca haviam lido mangás, ou adultos que não liam desde a juventude, retornaram à mídia. Para esses públicos, a temática familiar foi o principal atrativo, enquanto os mais jovens se encantaram com as batalhas e o dinamismo da narrativa.
Como consequência do sucesso, livros e artigos foram publicados com o objetivo de ensinar como “vender” mangás shounen também para o público idoso, adaptando estratégias de marketing para um grupo demográfico historicamente ignorado pela indústria editorial. Trata-se de uma mudança de paradigma significativa.
A sinergia entre o encerramento do mangá e o auge da popularidade do anime gerou um efeito surpreendente: o público, ciente de que a obra estava próxima de seu fim, correu para adquirir os volumes e descobrir o desfecho da história, o que elevou ainda mais as vendas. A sequência Anime de Sucesso > Filme de Sucesso (maior bilheteria da história do Japão) > Encerramento de Sucesso (volume mais vendido da história) consolidou Kimetsu no Yaiba como um fenômeno completo, onipresente no cotidiano japonês.
Como ocorre com obras amplamente comentadas, alguns detratores tentaram minimizar seus feitos, uma tentativa de validar suas preferências pessoais ou defender obras concorrentes. Isso ocorreu sobretudo no Ocidente. No Japão, entretanto, a recepção foi amplamente positiva, e críticas foram raras. A ubiquidade da obra gerou um clima de entusiasmo generalizado.
No ambiente doméstico, escolar e profissional, expressões derivadas da obra, como “Zenshūchū no kokyū”, passaram a ser utilizadas em situações cotidianas para se referir a momentos de concentração, a ponto de o então primeiro-ministro utilizá-la em um discurso. Termos como “Kimetsu Keiki” foram cunhados por economistas para descrever o aumento da atividade econômica em diversos setores impulsionada pela obra: action figures, roupas, brinquedos e diversos produtos licenciados viram suas vendas dispararem.
Aglomeração para ver o trem de Kimetsu no Yaiba
Obras como Jigokuraku, Jujutsu Kaisen e Chainsaw Man também se beneficiaram da entrada desses novos leitores, que buscaram títulos semelhantes após Kimetsu no Yaiba. Conforme publicado pelo jornal econômico Nippon, a obra foi essencial para reverter a tendência de declínio do mercado editorial, que superou pela primeira vez a marca de 600 bilhões de ienes durante a explosão do mangá de Gotouge. Pequenas e médias livrarias relataram que apenas sobreviveram à pandemia graças ao sucesso da série.
O mercado de mangás vinha enfrentando dificuldades em atrair os mais jovens, que preferiam jogos e redes sociais. Embora assistissem a animes, muitos não tinham interesse em ler mangás, fenômeno que se repete com títulos populares como Dandadan e Sakamoto Days, cujas adaptações não convertem em vendas expressivas de volumes. Com Kimetsu no Yaiba, porém, esse público voltou-se para a leitura.
Tanto o jornal Nippon quanto a equipe editorial da Weekly Shonen Jump reconheceram que Kimetsu no Yaiba demonstrou aos jovens que ler mangás “valia a pena”, o que resultou em um aumento contínuo no consumo da mídia durante anos. Embora essa “onda” esteja enfraquecendo, ela impulsionou títulos como Jujutsu Kaisen e Tokyo Revengers. A obra de Koyoharu Gotouge atingiu números espetaculares e transformou o comportamento de consumo cultural no Japão.
É provável, no entanto, que esses números não tivessem sido alcançados sem o contexto de pandemia. O sucesso da obra começou antes da Covid-19, vendendo acima de 2 milhões de cópias, mas a pandemia expandiu o sucesso. A Covid-19 confinou milhões de pessoas em casa e, no Japão, Kimetsu no Yaiba tornou-se a principal referência cultural do período – enquanto no Brasil o Big Brother dominava as redes, no Japão, era o mangá que unia famílias. Em 2020, apenas o mangá vendeu 82 milhões de cópias físicas, estabelecendo o recorde de maior número de cópias vendidas em um único ano, superando o recorde anterior de One Piece.
Conforme apontado pelo Nippon, Kimetsu no Yaiba é o maior fenômeno cultural pop da última década e se tornou parte da cultura nacional japonesa.
O LEGADO
Embora o mangá tenha sido concluído ainda em 2020, seu legado permanece vivo até os dias atuais, tendo moldado profundamente a relação entre a indústria de mangás, o público leitor e seus parceiros comerciais. Conforme explicado no livro japonês “All About The Manga Business”, de autoria do diretor do Instituto de Pesquisas de Mangás, muitas empresas ainda buscam consultores com o objetivo de reproduzir, em suas estruturas, os resultados obtidos por Kimetsu no Yaiba.
As editoras de mangás modificaram substancialmente suas estratégias de marketing: aceleraram a transição para o meio digital; passaram a desenvolver campanhas voltadas para adultos e idosos; buscaram sincronizar o encerramento de obras com o lançamento de suas adaptações animadas; aumentaram o investimento em produções cinematográficas (já populares, mas que se tornaram ainda mais estratégicas); passaram a priorizar estúdios de animação de alta qualidade para adaptações em temporadas, em vez de recorrer a estúdios mais acessíveis com horários televisivos fixos (uma prática que já existia, mas que se consolidou como pilar central da política editorial pós-Kimetsu); e ampliaram parcerias com plataformas de streaming (já que grande parte da popularização da obra se deu por meio desses serviços), entre outras mudanças significativas.
Na cultura popular japonesa, muitos se referem a Kimetsu no Yaiba como “a obra de seu período pandêmico”, e protagonistas armados com espadas são frequentemente comparados a Tanjiro. É plausível supor que, nos próximos anos, vejamos crianças que começaram a ler mangás por influência da série tornarem-se autores, utilizando a obra como referência direta. É inegável que Kimetsu no Yaiba serviu como porta de entrada para uma nova geração de leitores. Seus produtos continuam, até hoje, entre os mais requisitados no mercado.
Trabalhadora organizando produtos de Kimetsu no Yaiba durante a pandemia
Kimetsu no Yaiba tornou-se o novo gold standard para a maioria das editoras: uma referência central que estas tentam compreender e replicar com afinco. Para muitos analistas, repetir o que ocorreu com a obra é uma tarefa improvável, pois sua explosão de sucesso esteve intrinsecamente ligada ao momento histórico em que o mundo se encontrava. No entanto, alcançar sequer 50% do impacto comercial de Kimetsu no Yaiba já representaria, para muitas editoras, um de seus maiores êxitos.
No léxico editorial e jornalístico japonês, a expressão “鬼滅現象” (Fenômeno Kimetsu) passou a designar todo sucesso inesperado de proporções extraordinárias. Conforme relatado pela J-Books, o número de livros relacionados à obra – seja comentando, seja analisando o fenômeno – cresceu substancialmente. Ainda que a frequência de publicações venha diminuindo, o tema permanece relevante nos estudos de marketing. A “febre Kimetsu” é comparada, em termos de impacto cultural e comercial, à de One Piece nos anos 2000 e à de Pokémon nos anos 1990.
É insustentável afirmar-se conhecedor do mercado de mangás sem ser capaz de discutir as consequências socioculturais de Kimetsu no Yaiba, efeitos que persistem até hoje e que compõem um legado inegavelmente marcado pela pandemia e pela década de 2020. O mercado editorial atual encontra-se, em grande medida, estruturado para tentar replicar o sucesso da obra. Ainda que, futuramente, esse cenário se transforme (como ocorre com todas as tendências), a influência exercida por Kimetsu no Yaiba sobre as concepções de marketing e comercialização de mídias pop no Japão já está registrada – e continuará sendo objeto de análise nos anos que virão -.
Talvez o Ocidente, por estar alheio à magnitude desse fenômeno, jamais compreenda plenamente o que foi o Fenômeno Kimetsu, mas o Japão o vivenciou intensamente, e quem o experienciou dificilmente o esquecerá. Cinco anos após o fim do mangá, o filme “Castelo Infinito” está alcançando enorme sucesso, com plataformas de venda de ingressos sofrendo instabilidade devido à alta demanda, demostrando que o público ainda está muito engajado na obra.
Kimetsu no Yaiba já atingiu 220 milhões de cópias em circulação, sendo 164 milhões apenas no Japão, números que a colocam à frente de Slam Dunk em vendas totais, com uma média impressionante de quase 10 milhões de cópias por volume. Trata-se do quarto mangá mais vendido da história da Weekly Shonen Jump, com apenas 23 volumes publicados. É inegável que entrou na história.