
Texto opinativo que fala abertamente de eventos que acontecem nos capítulos do mangá, disponível no Mangaplus em inglês.
Anime e mangá de bandas de rock de garotas serão um dos marcadores culturais dessa era no Japão, a influência e sucesso de histórias como Bocchi the Rock, Girls Band Cry, MyGo, dentre outras, está criando um quase-subgênero inesperado. Mas o que levou a isso? Por que o rock voltou a dialogar com o público? Dentre desse movimento surge o maior mais novo sucesso da Jump+ em Girl Meets Rock. Ao analisá-lo e sua relação com parte da história do cenário do rock japonês podemos entender melhor esse momento.
Vencedor de Mangá digital de 2024 no prêmio TsugiManga, segundo colocado de melhor mangá entre leitores masculinos no Kono Manga ga Sugoi em 2025, terceiro colocado no prestigiado Manga Taishou. Números impressionantes de visualizações e vendas. Girl Meets Rock (Futsuu no Keionbu, título original) é uma das grandes sensações modernas da indústria de mangá.
Publicado originalmente de forma independente por Kuwahali, um artista novato, no Twitter e depois transferida para a plataforma de obras indie da Shueisha, a Jump Rookie, a obra chamou atenção e se tornou parte da line-up do popular serviço digital Jump+, recriada do zero agora com arte de Tetsuo Ideuchi.
Qual seria o segredo exatamente para um sucesso tão incomum que foge das lógicas do mercado de mangá, no qual obras são trabalhadas por anos com editores antes de sua publicação?
A história foca em Chihiro Hatono, uma garota no auge de seus 15 anos que, vista como um pouco deslocada e esquisita, decide mudar ao entrar no Ensino Médio e se juntar ao clube de música por causa de seu amor ao rock, mesmo que não tenha a habilidade necessária ainda para tocar numa banda.
Lá Hatono conhece um grande número de outros alunos, o clube conta com dezenas de membros e bandas são formadas entre pequenos grupos. Aqui o cenário é criado para explorar as relações e complexidades de diversos estudantes com a juventude à flor da pele.
Pode parecer banal para alguns que o rock seja parte de uma narrativa dramática adolescente sobre introversão, namoros, problemas de comunicação entre amigos, mas é totalmente compatível com a história do rock japonês, principalmente as cenas punk e alternativas — algumas das mais influentes na narrativa.
A banda mais citada no mangá é definitivamente o Ging Nang Boyz, grupo punk do começo dos anos 2000. A protagonista Chihiro tem seu nome baseado numa de suas canções (Tohoku Shinkansen Wa Chihiro-chan Wo Nosete). Eles são muito conhecidos pela excentricidade de seu vocalista, Kazunobu Mineta, tratado de forma quase divina pelos seus fãs.

Musicalmente falando, sua identidade está na injeção enorme de energia em canções que abordam principalmente temas inocentes da juventude, como amores da adolescência e o sentimento de busca por um lugar próprio. Soma-se a isso um contraste com instrumentos extremamente barulhentos e erráticos e o canto berrante de Mineta que em alguns shows demonstra tanta emoção que começa a babar no palco, tirar a roupa, entre demais loucuras.
Muitos fãs da banda definem o Ging Nang Boyz por sua pureza. Algo que soa absurdo em comparação à imagem caótica deles, mas que faz todo sentido quando se pensa na adolescência como um momento de turbulência e descobrimento.
Não é por acaso que diversos momentos chaves da obra se dão em shows com covers do Ging Nang Boyz. Girl Meets Rock trata seus concertos como cenas de epifania e desenvolvimento emocional para seus personagens, a relação de crescimento pessoal é direta com a idéia de despejar seus sentimentos na música — só quando são colocados para fora e compartilhados eles passam a ser entendidos.
Na canção Angel Baby, Mineta fala sobre sua experiência com um romance adolescente enquanto clama o quanto o rock o salvou:
“O Rock’n Roll vai mudar o mundo! Angel Baby! Esse é o único lugar para mim”
Kuwahali usa essa letra para contar a história de uma garota lésbica que, no fim de seu Ensino Médio, está sentindo o fim de uma era de sua vida enquanto mergulha nas suas memórias: as doces e amargas, que só existem pela sua identidade.
O autor sabe que como pessoa, seu personagem tem uma história pessoal completamente diferente de Mineta, um homem que foi um garoto numa década completamente diferente, mas consegue transcrever a universalidade e atemporalidade desses sentimentos de forma que a letra parece ter sido feita à mão para a menina que está colocando sentimentos reprimidos em anos de silêncio em palavras agora.

O punk rock japonês surgiu nos anos 1970 como forma de contestação à alienação social e a ordem vigente. Foi um grito de rebeldia que influenciou gerações de músicos depois, como o próprio Ging Nang Boyz. Em Girl Meets Rock, essas músicas viram um grito de expressão individual contra a atmosfera esmagadora social do sistema estudantil e das expectativas generalizadas colocadas em todos os jovens, ignorando suas questões pessoais.
Voltando à protagonista Hatono. A figura dela também é uma de rebelião jovem, surpreendentemente. Hatono é tímida, introvertida e visualmente não passa impressão alguma de ser roqueira. Porém é um legado que carrega de seu pai, que a introduziu desde pequena às músicas que ouvia na sua adolescência.
A mãe de Hatono se divorciou do pai, que tem problemas em manter uma vida estável e essa conexão musical é que cria um elo presente entre os dois que molda muito do que Hatono é hoje. Ela conheceu as bandas por seu pai, mas se aprofundou por interesse próprio, com seu gosto sendo primariamente por bandas dos anos 1990 e 2000 que tiveram seus ápices muito antes do nascimento da protagonista.
Mas o que faz de Hatono uma rebelde é o fato de que apesar de todos seus problemas de imagem em relação ao que se espera de um roqueiro, ela está decidida a melhorar, na guitarra e no canto. Após falhar num teste em sua escola, ela decide passar as férias de verão inteiras treinando num parque, tocando sua guitarra e cantando em público para aprender a lider com o nervosismo ao mesmo tempo que aprimora sua técnica.
O treinamento culmina com Hatono cantando a canção Riyuu Naki Hankou (The Rebel Age) do a flood of circle para Ayame, uma de suas colegas que está pensando em abandonar o clube após dramas pessoais que fazem sua auto-estima cair e trazer de volta suas cicatrizes sentimentais. Num tom de voz estranho para uma garota (algo repetido diversas vezes no mangá), Hatono canta a letra que diz:
“Querida, mesmo que a gente caia, a história continua por caminhos que nós criamos”
A música foi justamente escolhida pelo autor por ser um ato pequeno de rebelião de Hatono. Sua voz que durante o verão berrou o mundo a existência da garota sem um destinatário específico, agora atingia um alvo. Hatono desafia assim até sua própria introversão para poder confortar alguém.

A banda principal da obra é formada por Hatono, Ayame e mais duas amigas, Rin (que trata Hatono como sua deusa inspiradora) e Momo, uma garota gentil e amigável, mas que sofre por não conseguir entender sentimentos românticos. São quatro meninas ligeiramente deslocadas e que se unem após diversos desastres amoroso. Adotando um nome irônico de banda: Heartbreak [coração quebrado].
O nome é inspirado em canção homônima do grupo de rock indie Zazen Boys. O grupo foi criado por Shutoku Mukai, criador também de uma das bandas preferidas de Hatono e talvez a segunda mais citada na série, o Number Girl.
Mukai foca suas músicas em vinhetas cotidianas, dizendo ser um amante das vidas que existem casas pequenas e não em grandes prédios. Enquanto o Number Girl traz composições alternativas que esbanjam uma emoção transbordada, o Zazen Boys traz um rock “matemático” mais calculado com uma segunda faceta do músico.
A carreira multifacetada de Mukai se faz presente na identidade do Heartbreak do mangá, que reúne garotas de preferências e personalidades muito dstintas, mas todas com suas próprias experiências pessoais desenvolvidas nas páginas da história.
Nas palavras do agora cinquetão Mukai: “Posso ter cinquente anos, mas sinto… forever young, forever young, forever young! [sempre jovem]” fazendo referência à lenda da música, Bob Dylan. “O mais jovem que você é, mais sentimentos de vergonha e de se sentir inadequado você terá. Deixa tudo isso para lá. Mostre para o mundo ver. É para isso que a guitarra existe.”
Girl Meets Rock obviamente segue o conceito. Como falado anteriormente, a externalização desses sentimentos pela música é reflexivo. Em outro momento chave da história, Hatono canta acapella o iníco da única canção punk Linda Linda, do The Blue Hearts, banda formada em 1985.
Cantando apenas a icônica introdução da canção, a letra é quase uma declaração de Hatono sobre a noção do quão estranho é uma garota tão socialmente deslocada como ela cantar rock. Ela é ciente disso, mas ainda está disposta a cantar:
“Quero ser bonito como um rato
Porque é uma beleza que não pode ser capturada por uma fotografia”

A beleza do rato na canção existe tanto como uma tematização do punk, gênero que abraça o que é visto como é feio ou desajustado, mas também como uma ode às belezas fora do comum. Um rato é belo porque ele não se encaixa no padrão que temos do que é belo justamente, ele só existe como é, sem se importar com a nossa percepção. Hatono ali se coloca como o rato — ela continua cantando e isso é belo, não importa o que os outros digam.
A canção é quase um hino do rock japonês e sua presença na cultura pop do país é enorme. Um dos grandes exemplos é o filme slice of life de 2005, Linda Linda Linda de Nobuhiro Yamashita. É curiosamente também uma história sobre uma banda de um clube de música que, três dias antes do festival da escola, perde um de seus membros e precisa trocá-la pela primeira pessoa disponível, que no caso é uma estudante coreana que ainda não fala japonês fluentemente. Elas então decidem cantar músicas do The Blue Hearts, incluindo Linda Linda.

O filme trata esse cenário de uma forma natural, com uma direção leve que se importa com a imersão. É como se o espectador estivesse vendo três dias de jovens reais, é um pequeno recorte da adolescência, do quão estranhos e desajustados jovens podem ser enquanto tentam navegar as mudanças da vida.
Mas é isso que faz o clímax do filme tão satisfatório. O crescimento dessas garotas em três dias é passado nesse tom natural e silencioso, mas o grito entalado da garganta aparece junto do icônico refrão: Linda! Linda! Linda!
Os temas são bem parecidos com os de Girl Meets Rock obviamente, de bandas, adolescência, extravasão. Mas além disso, o intervalo de tempo entre as obras que é interessante: a música foi composta em 1987, o filme é de 2005 e Girl Meets Rock publicado em 2023. Quase vinte anos de diferença entre cada um, mas todos mantendo a idéia de subversão dentro de suas épocas e espaços.
“Não deixe ninguém nos dizer que quando nós crescemos, deixaremos de ser crianças. Quando virarmos adultos, nós não iremos parar de ser crianças. Quem nós somos realmente? O nosso eu real está aqui? Nós só temos mais um tempinho para sermos os nossos eu real” – Introdução do filme Linda Linda Linda (2005).
A canção também aparece no começo do mangá e recente anime Rock wa Lady no Tashinami deshite, uma históra sobre uma banda de garotas ricas que também estão subvertendo as normas esperadas delas na alta sociedade, que é praticamente água e óleo com o rock, um gênero de contestação. A beleza do rato aqui está como o desejo dessas garotas de poderem ser quem são em contraste com o mundo de aparências de suas famílias.
Em entrevista recente, o diretor do anime de Rock Lady, Shinya Watada, foi perguntado sobre a recente explosão em popularidade de obras sobre bandas femininas. A sua resposta foi que é uma trend criada pela injeção de temas do rock às séries de idol que dominaram nos anos 2010: “temas nessas obras de banda como admiração e brilho, mas também sofrimento, dor e resistência dialogam com as audiências de hoje, que estão vivendo um mundo e sociedade instável. O poder puro e intensidade da música rock está em ressonância com os desejos sentimentais das audiências dessa era”.
Em Girl Meets Rock, Hatono é inspirada pelas performances de outras bandas do clube e em resposta também as inspira quando canta. É uma relação mútua no qual a expressão artística existe como uma espécie de tabelinha em vários sentidos. Tanto com essas canções clássicas quanto nas relações entre membros do clube, esse brilho é compartilhado.
Em momento recente na obra, uma batalha de bandas coloca o Heartbreak contra o protocol, banda masculina do mesmo clube que é liderada por Takami, um talentoso garoto que é o mais próximo de um antagonista no mangá, já que descarta os outros sem se importar muito com os sentimentos alheios. É um contraste direto com a emocional Hatono que conquista os outros pelo seu puro desejo de cantar.

Um flashback recente explica o porquê da atitude de Takami. Seu irmão, Ryuki, era um músico indie que sonhava em crescer com sua banda, que se movia puramente por energia e a rebelião rock’n roll. Entretanto os problemas emocionais de Ryuki aos poucos o afastaram dos demais membros, que foram saindo um a um, e Takami viu seu irmão apenas como alguém mais obcecado pelos valores rebeldes do rock do que com seu próprio futuro. E mesmo assim Takami não deixa de admirar o quanto seu irmão agia sem se importar com as expectativas alheias da sociedade, algo que ele mesmo não consegue fazer.
Em certo nível, ele vê em Hatono uma figura parecida de alguém que se move mesmo com os olhares alheios. O seu cantar é um ato de contestação de tudo aquilo que é esperado e as decisões passionais de Hatono remetem em contexto diferente a Ryuki — os dois partilham do mesmo espírito do rock.
Voltando novamente ao Ging Nang Boyz, é fácil traçar paralelo entre Ryuki e Kazunobu Mineta. Os dois começam a tirar as roupas no palco reagindo à emoção de suas apresentações e seus fãs, os dois são magnetos de carisma e os dois aos poucos quebraram suas próprias bandas; o Ging Nang Boyz perdeu seus demais membros e hoje é só Mineta com músicos de apoio.


As escalas são diferentes até dentro do mangá. Ryuki é um jovem adulto que se afasta de seus amigos e família em busca de um sonho impossível. Hatono, ao contrário, conquistou amizades e se tornou mais social com a banda. Mas mesmo assim os dois são reflexos do que Mineta passou, tanto como artista quanto numa figura de subversão, ao autor do mangá. Sua influência toma forma nos temas da obra e, parcialmente, em diversos personagens que vão dali desenvolver suas próprias personalidades.
Nesse texto não quero implicar que apenas o rock japonês é sobre contestação e juventude. É basicamente a imagem e história universal do rock e bandas citadas na obra são inspiradas diretamente por atos do mundo todo, sejam os Ramones ou o Weezer. Entretanto o contexto com que isso foi traduzido nas rígidas regras da sociedade japonesa e sua estrutura escolar cria um estilo específico mais focado em certos temas e experiências, ser desajustado é ainda mais um ato de rebelião.
Obras como Girls Band Cry, MyGo, Rocklady e demais possuem raízes similares e temáticas que fluem bem entre si, mas as formas com que cada escritor, cada artista e cada obra redimensiona esses sentimentos criam vozes únicas parte desse coral que define os tempos.
Girl Meets Rock é parte de um oceano preenchido por diversos outros rios de inspiração. Tantos que não poderia falar o suficiente sobre alguns de todas as influências aqui, sejam mangás como Skip to Loafer ou demais grupos como o Tokyo Jihen, andymori, etc. Porém essa facilidade de gerar empatia atrai e encanta muitos que estão conhecendo tantas obras por meio do mangá justamente pela obra pegar essas músicas e transformá-las de forma que elas são tão modernas agora quanto quando foram criadas.
“Everything is my guitar [Tudo é minha guitarra]
Ouçam minha guitarra
Sem um som em particular
Coberta por poeira
Everything is my guitar
Ei, não diga que estou errado
E aí de novo e de novo e de novo e
De novo e de novo e de novo e a qualquer momento”
– andymori