
A palavra “Gishiden” é utilizada na literatura japonesa para descrever a vida dos samurais. Em uma tradução literal, significa ‘Crônicas dos Leais Guerreiros’ – partindo do pressuposto que samurais são guerreiros leais. Mas nem sempre.
É verdade que os famosos guerreiros feudais japoneses, os samurais, são sempre envelopadas por discursos de honra e hombridade. Eles foram homens de honra que protegeram seu feudos de ataques inimigos durante séculos e, por isso, fazem parte do inconsciente coletivo japonês como exemplos a serem seguidos: fortes, destemidos e dispostos à sacrificar suas vidas pelo seu senhor.
Bem, como diria Stephen King: “Quem escrever sobre História também escreve um pouco de ficção”. É certo que o Bushido, as normas e condutas essenciais a qualquer guerreiro do Japão feudal, eram muito importantes e vistas como um ideal a ser seguido por estes espadachins. Mas elas eram essencialmente isto: um ‘ideal’, não a ‘regra’. E até mesmo regras podiam ser facilmente quebradas.
Quando nos aprofundamos nos relatos históricos, descobrimos que nem todos os samurais eram tão honrados assim – tal qual o famoso Código de Cavalaria que existia na Europa Medieval, ele costumava ser ignorado por uma boa parcela de guerreiros medrosos e cruéis.
Mas havia samurais ‘bons’. As narrativas que exaltam os espadachins honrados que, na maioria das vezes, precisam lidar com colegas que eram a verdadeira antítese do que um bom samurai deve ser. Nestas crônicas, aprendemos que o ‘samurai é o lobo do samurai’, por assim dizer, além de ajudar a desmitificar esta ideia romantizada a respeito destes espadachins.
E entre os vários relatos, poucos são mais interessantes quanto as crônicas de Satsuma, que o grande mestre do gekiká, Hiroshi Hirata, nos presenteia!
Enredo
Samurais eram a classe mais respeitada do Japão. Militares em essência, eles gozaram de um período de paz muito grande no país, que os permitiu se aprimorarem em outras artes. Não era incomum haver samurais versados nas artes plásticas, na literatura, escultura e outros trabalhos considerados nobres.
Porém, isto era privilégio da classe mais alta entre os samurais, os Joukashis. Havia uma hierarquia até entre os privilegiados e os samurais da casta mais baixa eram chamados de Goushis. Porém, ainda havia mais camadas. Feudos mais prósperos possuíam os samurais mais ricos, muitos deles vivendo no luxo digno de um Shogun. E territórios empobrecidos, como a Satsuma retratada neste mangá, fazia com que até a vida dos grandes senhores de terra fosse difícil – e a vida de goushis e camponeses praticamente miserável.
Esta é, certamente, um prisma que não estamos acostumados a ver nas histórias dos samurais: a pobreza. Em Satsuma, durante o século XVII, com o Japão pacificado, hordas inteiras de samurais estavam sem trabalho e, por isto, tinham que se sujeitar aos trabalhos da ‘classe baixa’ para sustentar suas famílias.
E é neste ínterim que conhecemos um destes samurais de vida miserável: Shiba Sakon. Um samurai carpinteiro que, após se envolver em um crime, é condenado à morte através de um método peculiar, chamado Himemontori: trata-se de pegar prisioneiros e dar a eles uma chance de escaparem de sua pena capital… SE conseguirem fugir seminus no lombo de um cavalo enquanto um enxame de samurais armados corre atrás dele de lanças e espadas na mão.
Este ‘esporte’ servia para outro propósito: dar aos samurais insatisfeitos algo para ‘brincarem’ e se esquecerem dos problemas que ocorriam à sua volta. Na época em que a história se passa, Satsuma é um barril de pólvora prestes a explodir com a insatisfação de todos. E Shiba Sakon será apenas outro desafortunado a ser dilacerado pelas espadas dos seus iguais… ou será que não?
O mangá apresenta vários personagens e Shiba é apenas um deles. As histórias destes leais guerreiros se intercruzam nesta crônica, que se desenvolve durante um dos períodos de maior crise do feudo de Satsuma – quando é designado a todo o clã a traiçoeira tarefa de auxiliar nos esforços das enchentes em uma região distante do Japão. É uma história com tons dramáticos incríveis e que se desenvolve muito bem à medida que a trama avança.
Arte e Quadrinização
Hirata é um mestre do traço! É um quadrinista altamente especializado em desenhar samurais e faz isso com perfeição. As cenas de abertura, e algumas ‘splash pages’, são onde temos o melhor do seu desenho. E mesmo nas sequências onde o trabalho dele está mais ‘apressado’ ele ainda tem um domínio grande da movimentação e dinamismo.
Alias, o traço dele é bem dinâmico. Em parte porque, além de quadrinista, ele também é um excepcional calígrafo. Ele consegue fazer personagens em movimento de uma forma muito convincente, bem superior ao trabalho da maioria dos seus colegas do período.
O mínimo adendo à esta parte é que, como se trata de uma obra mais antiga, ela possui alguns pequenos ‘vícios’ de quadrinização (como a pouca sutileza na passagem de algumas cenas) que podem parecer demodé para muitas pessoas acostumadas com quadrinhos modernos. Entretanto, é inegável que até este clima mais de época ajuda a imersão nesta história. Não é, de forma alguma, um item para justificar perda de pontos.
Edição em português pelo Pipoca e Nanquim
Quando eu comecei a abrir as páginas do mangá, confesso que estranhei alguns primeiros balões vazios – balões de grito, estilizados. Na hora eu pensei: “Não é possível! O Pipoca e Nanquim ia cometer um erro tão básico desses?!” mas aí comecei a perceber que o ‘erro’ se repetia e, no final, fazia parte da narrativa mesmo os balões daquele jeito.
Dito isso, o trabalho da editora continua primoroso, como sempre! Sobrecapa, papel de ótima qualidade, costura boa, notas de rodapé, tradução, as letras desenhadas em alguns momentos parecendo caligrafia japonesa… perfeito! Os caras sempre fazem um excelente trabalho!
Conclusão
A saga de Satsuma Gishiden é espetacular! Para quem curtiu Lobo Solitário, certamente vai adorar esta obra… com algumas ressalvas!
Enquanto Lobo Solitário retrata a vida de Itto Ogami de forma mais fantasiosa e episódica (com o seu autor originalmente não tendo intenção de colocar um final para a história e tendo que tirar do bumbum um objetivo para todo o dinheiro que Ogami recolheu com os assassinatos), Satsuma Gishiden tem mais compromisso com a história – embora seus protagonistas sejam fictícios – e possui um final que muitos poderiam considerar até anticlimático. Mas é verdadeiro e abre brecha para futuras histórias que ocorrerão em Satsuma.
Jussara Nunes (Rede Sociais)
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