
Cancelamento, encerramento, descontinuação, rush editorial, o bom e velho machado. Quando temos um e não o outro? Quando podemos dizer que tal história teve um final apressado por decisões editoriais, e quando podemos culpabilizar apenas o autor por sua inabilidade no conduzir da narrativa?
Uma não-tão-breve introdução: O funcionamento de uma revista
Despedidas… sempre tão doloridas…
O final de Undead Unluck reviveu um antigo debate quanto ao uso adequado de terminologias. O mangá teve um final natural, porém apressado, que não apresentou de maneira aprofundada todos os possíveis elementos a serem explorados na sua história. Teoriza-se que a equipe editorial planejou o golpe e, em conversas com seu autor, Yoshifumi Tozuka, decidiram pelo fim da série.
Undead Unluck viveu por cinco anos na maior revista de mangás do Japão, naturalmente, conquistou seu devido respeito editorial, mesmo que muitos futilmente questionem isso. O privilégio desse tipo de série é a maior flexibilidade no momento da negociação, a garantia do habeas corpus do seu mangá. Se Undead Unluck foi ou não intimado a terminar sua história um pouco mais cedo do que gostaria, podemos também assumir que esse aviso não surgiu de última hora, mas há um bom tempo e com o consentimento do seu escritor. Esse tipo de situação impõe uma relação crucialmente diferente de outros ‘’cancelamentos’’ mais tradicionais.
Quem acompanha cotidianamente o funcionamento da Shonen Jump entende que seu maior prazer é a constante movimentação na parte inferior da TOC. Histórias novatas surgem e desaparecem num piscar de olhos, sem muito apego e sem nenhuma cerimônia. Essas histórias que ‘’fracassam’’ logo na sua fase inicial são incapazes de angariar o mínimo de prestígio editorial. Sua capacidade de negociação beira o nulo, e seu encerramento é imposto sem muitas possibilidades de retórica. O exemplo de Undead Unluck torna-se conveniente pelo fator novidade: seu nome é o que aparece nos holofotes do momento. Nada mais natural do que iniciar o debate partindo dele.
Entretanto, meu objetivo não é fazer uma análise de caso particular sobre a série, não esperem por isso, o que desejo é discutir o entendimento a respeito dos ‘’cancelamentos’’, não só da Shonen Jump, mas das revistas de mangás como um todo. Vale ressaltar o óbvio: a proposta de estabelecer uma hipótese que explique os limites de um cancelamento não tem uma fundamentação muito sólida. A argumentação será sustentada por meio de conjecturas, pura retórica pautada pela minha leitura de mercado, pequenas pesquisas e leituras de entrevistas. Sei que isso vale muito pouco, até porque um trabalho sério do tipo exigiria uma leitura mais elaborada sobre o tema, o uso de fontes apropriadas e uma pesquisa bem extensa. Algo do tipo ainda está longe de ser feito.
A proposta é mais a de introduzir dúvidas num entendimento que o público geral parece ter tanta certeza sobre, uma certeza um tanto frágil e infundada. No ano passado tive a oportunidade de organizar um texto – muito bom, por sinal – sobre o funcionamento da TOC aqui pro site. Nele, reservei algumas linhas para destacar o ‘’poder moderador’’ de toda revista, que é sua equipe editorial.
O corpo editorial da revista é quem decide o entra e sai de histórias, o conduzir de suas IPs, quem precisa de mais promoção, quem precisa de menos, quem será encerrado, quem recebe anime; tudo passa pelas mãos desses profissionais. O maior problema, nesse caso, é que essa equipe, com tanto poder e com a capacidade de decidir basicamente todo o desenrolar de uma série, é nada mais que um corpo fechado, que pouco ou nada interage com seu público.
O maior aliado e o maior inimigo do leitor curioso
Por muito tempo, o entendimento de como funcionam as revistas foi sustentado por Bakuman. Foi partindo dele que o otaku mais interessado abriu os olhos para a organização do mundo editorial e para o funcionamento da TOC. Vemos até hoje, 13 anos depois, a resistência de sua herança.
Há leitores que acreditam piamente na ideia de que a TOC é reflexo dos capítulos de sete semanas atrás e que sua classificação reflete o maior número de votos que cada série recebeu, como se a meritocracia fosse o fator determinante para garantir a sobrevivência de cada história.
Foi apenas recentemente que começamos a notar uma tímida resistência a essa interpretação bakumanesca. Um exemplo disso é o maior destaque que hoje se atribui aos editores-chefes das revistas, nos quais observamos uma personificação da entidade conhecida como editorial em sua própria figura. O editor-chefe, muitas vezes, se confunde com a totalidade dos editores presentes em uma revista.
Não temos grandes livros sobre o assunto, nem tantos artigos sobre o tema, mas há inúmeras entrevistas que revelam um pouco do funcionamento editorial. Não por coincidência, as principais entrevistas partem justamente do principal nome da equipe: o próprio editor-chefe.
Nessas entrevistas, é costume dos entrevistados (Hiroyuki Nakano, Yuu Saito) atribuírem a si mesmos um papel de extremo destaque. Eles se colocam como os responsáveis pelas mudanças, os responsáveis por tirar a revista da lama, os protagonistas da grande revolução. E esse protagonismo não é exclusivo dos editores-chefes da Shonen Jump. Se pesquisarmos um pouco mais, é possível encontrar entrevistas de editores-chefes da Sunday ou da Afternoon que carregam um grau extremamente parecido desses discurso.
O que procuro destacar com isso é que, assim como a fé inabalável dos bakumanistas, que seguiram cegamente a interpretação de um mangá para entender todo o funcionamento de uma revista de quadrinhos, vemos hoje, de maneira reconfigurada, uma fé cega depositada em um único nome: o editor-chefe. Essa tentativa de centralização organizada por editores-chefes muitas vezes mais parece uma disputa de ego do que uma representação séria do funcionamento interno de uma revista.
Sabemos que cada história recebe um — ou mais de um — editor durante sua publicação. Esse editor será responsável por criar, ao lado do autor, uma história. O editor-chefe organiza os editores, mas não é ele o responsável pelas particularidades de cada trabalho. De certo, estamos na verdade falando de um ambiente nada centralizado, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento de cada história.
Um mangaká pode ter a sorte de contar com um bom editor, enquanto outro pode ter o azar de trabalhar com um editor despreparado. Essa fragmentação acaba sendo mais negligenciada do que deveria. A responsabilidade estrutural da revista como um todo recai sobre o editor-chefe, mas, no que interessa ao leitor — as histórias —, são os pequenos editores, muitas vezes apagados e esquecidos, que fazem a verdadeira diferença.
Esse trabalho conjunto entre o mangaká e seu editor é raramente documentado. Encontramos entrevistas de editores falando sobre seus mangakás, ou de mangakás falando sobre seus editores, mas dificilmente vemos essa parceria esmiuçada, descrevendo em conjunto seu trabalho para o público geral. Recebemos informações esparsas, fragmentadas e difusas, que não costumam dialogar entre si.
O resultado disso são interpretações esparsas, fragmentadas e difusas, que não conversam entre si. Quando afirmamos que “certo mangá foi cancelado”, estamos dizendo que, por decisão editorial, aquele mangá teve sua progressão descontinuada.
Como podemos ter certeza de que o editorial decidiu pelo cancelamento da série, sendo que pouco ou nada foi comunicado a respeito? Não pretendo cair num relativismo simplista e concluir algo como o famosíssimo paradoxo do gato preso na caixa: “Será que foi cancelado ou não foi cancelado? Não sabemos, pode ser um ou outro…”.
Não é bem assim. É completamente plausível afirmar que uma série encerrada com menos de 50 capítulos foi “descontinuada”. Poucas histórias serializadas são planejadas para durar menos de um ano; geralmente, espera-se que elas tenham uma duração maior, superando pelo menos 100 capítulos (cerca de 2 anos de serialização). Se notamos uma história com pouco tempo de vida, com baixas vendas e posições ruins na TOC, não seria nada absurdo concluir com convicção que tivemos um ‘’cancelamento’’.
A respeito das terminologias: Cancelar ou não cancelar?
Um triste fim ou um já foi tarde?
A respeito do ‘’cancelamento’’, prefiro a utilização da palavra “descontinuação” em contraponto, já que a primeira carrega não só um tom pejorativo, mas também uma noção inadequada. Cancelar muitas vezes implica anular, eliminar ou deixar sem efeito, como se a história ”cancelada” não tivesse valor, sendo um trabalho inútil. Seria afirmar que o trabalho de um artista não possui serventia.
Temos um exemplo direto no próprio fandom de Undead Unluck, que rejeita prontamente a ideia do cancelamento, já que associar sua história favorita com o termo seria imputar um fracasso indevido. A palavra não aparece utilizada de maneira imparcial para meramente informar a descontinuação de uma história, mas também para rotular obras de maneira negativa.
No embate lexical, pouco importa a palavra escolhida, mas sim seu significado e aplicação. O problema é estritamente semântico: está no peso que atribuímos ao termo “cancelamento” e no sentido que dele extraímos ao utilizá-lo. Não nasceu vilã, mas foi transformada em uma.
Essa leitura do ‘’cancelamento’’ é recorrente e é ela que molda o comportamento de boa parte do público, que frequentemente evita certas histórias pelo pavor do ‘’cancelamento”. É fácil avistar leitores que se recusam a acompanhar séries recém-nascidas pelo enorme medo do “cancelamento”, eles esperam que a história passe primeiro pelo seu período de provação para só depois começarem a lê-la, acreditando que, só assim, terá finalmente adquirido algum valor. Encerrada antes disso, pode ser tranquilamente esquecida.
Nessa perspectiva, acompanhar uma história somente para ver seu ‘’cancelamento’’ seria uma leitura desprovida de sentido, já que um trabalho cancelado seria, na verdade, um trabalho descartável, indigno de qualquer menção ou lembrança. Se o tempo é um bem precioso que não reembolsa, não podemos desperdiçá-lo com um material fracassado.
Uma filosofia de leitura certamente triste e lamentável, que parte de uma lógica extremamente consumista, que falha em reconhecer o processo criativo experienciado pelo autor, da incapacidade de enxergar histórias como algo além de um mero produto e das possibilidades que uma história ‘’cancelada’’ pode atingir, mesmo com seu pouco tempo de vida.
Descartar uma história pelo simples medo do ‘’cancelamento’’ é não confiar na obra, é não confiar também na própria capacidade de abstrair algo do momentâneo. O ‘’cancelamento’’ desqualifica artistas e trabalhos de maneira totalmente fria, mas tão cruel quanto, ele também priva o leitor da possibilidade de conhecer uma boa história.
Decidir se uma obra vale ou não ser valorizada é um julgamento que cabe mais ao leitor. Valorizar ou desvalorizar uma história é uma responsabilidade pessoal, controlamos o nosso próprio tempo. Rotular categoricamente uma obra como sem valor, não. “Descontinuação” transmite a mesma ideia que o “cancelamento”, mas sem o tom negativo e inapropriado. Até o famoso “cortar” me parece mais útil.
Finais apressados sim, mas de quem é a culpa?
Mas se fosse assim e não de tal jeito seria muito melhor….
O segundo principal problema é a distinção entre ”encerramento natural” e ”encerramento imposto”. Como podemos separar essas duas categorias? O encerramento — ou cancelamento, para os teimosos — de Undead Unluck pode ser confundido com o de obras como Aliens Arena ou Kyokutou Necromance?
A resposta é um grande e incisivo não, mas por quê? Apenas pela quantidade de capítulos? Os fãs de Undead Unluck pouco se contentam com a ideia de que seu mangá favorito teve mais de 230 capítulos. Não é reconfortante saber que poderia — e deveria — ter sido diferente. Shaman King, Toriko, Katekyou Hitman Reborn, Shokugeki no Souma e, quem sabe, até Bleach passaram por situações semelhantes, sendo cortados antes de atingirem todo o seu potencial conclusivo.
Até que ponto podemos culpar o editorial pelo “encerramento precoce” e até que ponto podemos responsabilizar o autor por sua própria inabilidade? Culpa e mérito, nesse caso e em todos os outros, devem sempre ser compartilhados.
A ideia de que “tal história seria melhor se o editor não tivesse atrapalhado” é completamente irreal. Junto dela, temos outro grande clássico: “faltou um bom editor para ajudar na condução dessa história”. Sem Kazuhiko Torishima não teríamos Dragon Ball. Se Makoto Raiku (autor de Gash Bell) não tivesse uma experiência terrível com o editorial da Shogakukan, talvez hoje ele ainda estivesse publicando sua sequência na Shonen Sunday.
Ou seja, a relação entre editorial, editor e mangaká é pouco transparente e variável demais para que possamos alcançar qualquer conclusão definitiva, seja ela negativa ou positiva. Afirmar, como alguns poucos fazem, que Undead Unluck teve uma reta final insatisfatória por culpa dos editores é remover a responsabilidade criativa do próprio autor, tratando-o como uma constante vítima, um artista sabotado pelo universo. Essa visão também tira o mérito de outros escritores que, em situações semelhantes, conseguiram concluir suas histórias de forma harmônica.
A ideia de que ‘’o final está sendo apressado por conta dos editores’’ não possui uma fundamentação séria, pois trata-se de uma verdade, mas de uma verdade completamente redundante. O oposto do ‘’final apressado’’ seria o ‘’final não apressado’’, e esse também é decidido pelo editorial, sua condução pode ou não ser boa através da escrita do seu artista. Temos inúmeros exemplos de séries com liberdade criativa para se prolongar por vários capítulos, resultando em algo maçante e desinteressante a longo prazo. Garantir mais capítulos não assegura uma boa história, assim como ter menos capítulos não implica em uma história ruim.
Culpar a ignorância do público, o mercado ou as baixas vendas surge como uma nova desculpa, que também é facilmente desmantelada. Uma história que sobrevive por mais de 200 capítulos não deve nada ao público além de gratidão. A sobrevivência condicionada pelas vendas é algo que surgiu com a transição do feudalismo para o capitalismo; não há novidade nisso. Histórias com baixo apelo comercial serão encerradas para abrir espaço para outras com maior potencial de venda, revistas de mangá existem para vender, porque implicar surpresa numa constatação tão básica?
Então você teme o machado?
A morte chega para toda suas histórias, como você vai lidar com isso?
Gostaria de finalizar retomando e amarrando as principais ideias aqui apresentadas. Primeiro, a palavra ‘’cancelamento’’ deveria ser menos utilizada ou substituída. Seu uso não informa com exatidão o desfecho de uma história e implica uma negatividade desnecessária, que desqualifica trabalhos e inibe o leitor de conhecer novas histórias. Cancelamentos existem somente para casos como os de Act-age.
Segundo, a argumentação do ‘’encerramento precoce’’ é insustentável. Autor e editor trabalham em conjunto para a elaboração do melhor material possível. Concluir ou não concluir de maneira satisfatória uma história cai na responsabilidade de ambos, implicar que faltou tempo para produzir uma boa conclusão ignora a falta de manejo do escritor com a progressão da sua história e também desqualifica outras obras que produziram muito mais com menos tempo. O ‘’encerramento apressado’’, existindo ou não existindo, não inocenta seus criadores.
Potencialidades e o grande ‘’e se…’’ sempre existirão. Mas não recebemos o imaginável; recebemos o concreto, e julgamos o concreto pelo o que ele é, não pelo o que poderia ser. Exercícios de imaginação são bem-vindos no âmbito dos fãs, que se divertem com suas teorias e desejam sempre mais, mas não possuem espaço dentro de uma análise crítica.
O uso da palavra ‘’cancelamento’’ não deveria ser tão vulgarizado, histórias descontinuadas são descontinuadas porque tentaram criar algo, e isso, por si só, possui significado. Uma história que ultrapasse mais de um ano de vida não pode jamais ser considerada um fracasso, tendo uma adaptação para anime, mais absurdo ainda.
O legado de um bom mangá é medido pela sua construção total, não sua reta final. Portanto, ‘’encerramentos precoces’’ nada mais são do que simples encerramentos. A capacidade de lidar com as adversidades de uma publicação é o que vai separar um bom mangaka, uma boa história, de um trabalho potencialmente medíocre.
Quanto a sua relação com tudo isso, você teme o machado?