Nas próximas semanas e meses será publicado no Analyse It inúmeras críticas dos mangás que eu li ou reli nesses últimos meses. Os mangás mais curtos, com no máximo doze ou quinze volumes, receberão uma crítica mais completa, com somente em uma parte. Já os mangás mais longos, com mais de doze ou quinze volumes, receberão uma crítica dividida em arcos. Se o tempo permitir, trarei uma crítica por semana, variando entre mangás mais novos (como Dandadan e Kill Ao) e mangás mais velhos (como JoJo e One Piece), alguns inclusive já encerrados (como Fullmetal Alchemist).
E nada melhor do que começar com nosso querido One Piece, o “rei dos mangás”. Nessa crítica irei avaliar somente a primeira parte da saga de East Blue, tentando comentar quanto menos possíveis dos arcos seguintes. O meu objetivo nessa minha releitura era avaliar os elementos que transformaram One Piece em um sucesso nacional já nos seus primeiros capítulos, levando-a pilar imediato, criticando os pontos que eu acho decepcionante, por isso tentei relembrar também como fosse a minha primeira leitura e imaginar como os japoneses se sentiram lendo One Piece pela primeira vez em 1997, quando aqui ainda era tudo mato.
Romance Dawn
Uma das maiores críticas relacionadas a One Piece é que a série começa lentamente. Já vi gente argumentando que o mangá se torna interessante somente a partir de Alabasta. Eu discordo e devo dizer que o público japonês também, pois One Piece se tornou um sucesso já nos seus primeiros capítulos, e relendo a série pude entender muito bem o motivo pelo qual já na saga de East Blue a série se tornou um pilar da Weekly Shonen Jump.
Um dos maiores desafios de qualquer série nova é entregar um bom primeiro capítulo. Já em 1997 tínhamos séries sendo canceladas com dez capítulos, algo que na verdade nem acontece mais na Weekly Shonen Jump atualmente, por isso o ambiente era bem hostil para autores novatos. Eiichiro Oda, mesmo conhecendo esse ambiente hostil, decidiu entregar um primeiro capítulo relativamente incomum, no qual vemos o protagonista ainda como uma criança, antes de começar a sua jornada. Essa decisão de começar do passado, ao invés de apresentá-lo como graduais Flashback poderia ser uma trágica decisão, mas é um dos maiores acertos do mangá.
Pois em nenhum momento essa introdução parece arrastada, pois com um vilão detestável, personagens secundários carismáticos, uma arte cartoonesca incrível, é entregue um primeiro capítulo impactante que não precisa apostar em lutas para convencer, bastou uma tradicional dinâmica entre herói humilde e vilão soberbo para criar uma tensão narrativa. Ainda por cima, a dinâmica entre Luffy e Shanks convence tanto que conseguimos entender a dor de Luffy ao ver que seu amigo de cabelos vermelhos perdeu um braço para salvá-lo: Criamos imediatamente empatia pelos dois. O primeiro capítulo é deste modo um grande acerto que ajuda também a série a prosseguir nos capítulos seguintes, já que conseguimos entender muito bem a personalidade e as razões que levam Luffy a querer ser o “rei dos piratas”.
Além disso temos um outro acerto que é importante comentar. Por causa dessa onda de séries mais “dark”, muitos passaram a ignorar a importância da comédia em uma boa obra shonen, principalmente no passado. Quase todos os grandes Battle-Shounen dos anos 90 e 2000 tinham a principal característica herdada de Dragon Ball, por isso uma boa comédia. É inegável que Naruto, Bleach e Hunter x Hunter tinham a capacidade de entregar boas cenas bem-humoradas. One Piece também desde o seu primeiro capítulo entrega uma comédia de altíssima qualidade, com vários momentos hilários.
Essa mesma comédia é essencial para criarmos no primeiro volume uma empatia enorme por Monkey D. Luffy. Na minha opinião, o que transformou One Piece em uma série de sucesso imediato não são as cenas de ação e nem mesmo o “mundo complexo”, que nos primeiros volumes é inexistente, mas sim a sua comédia e a sua arte. Oda utiliza um traço cartoonesco com linhas claras, que conseguem passar uma leveza na leitura das páginas – ótimo para um mangá que se propõe a ser uma aventura divertida e engraçada, com um protagonista totalmente despreocupado com tudo ao seu redor -. Esse mesmo traço, com as expressões exageradas dos personagens e seu design incomuns dos mesmos, acaba exacerbando o senso de humorismo de Eichiiro Oda, que consegue entregar ótimas piadas e momentos cômicos em quase todos os capítulos.
Mas One Piece não é um mangá de comédia, por isso momentos de humanização dos personagens são necessários. A cena do “Onigiri” de Rika durante o arco de Romance Dawn e todo o desenvolvimento de personagem de “Koby” mostram a sensibilidade de Oda na criação de momentos e arcos dramáticos que dão profundidade a essa aventura descomprometida. Um autor comum não veria motivo para desenvolver um personagem como Koby, que não vai ter uma utilidade imediata na história após o primeiro volume, mas Oda mesmo assim cria um inteiro arco para ele, já que o seu desenvolvimento enriquece o primeiro arco e prende a atenção do leitor, que depois irá votar na série para restar na Weekly Shonen Jump.
E essa capacidade de criar grandes momentos para os personagens secundários é visto também no arco de “Orange Town”, que além de apresentar um vilão icônico, também nos entrega uma história emocionante de um cachorro, o Chouchou. Foi quando Oda começou a desenvolver todo o seu passado, sua relação com a loja e depois a destruição dessa loja que senti pela primeira vez emoção lendo One Piece e comecei a perceber que talvez o mangá tivesse algo a mais para me oferecer.
Orange Town não é um arco impecável, já que mesmo com muitas lutas, as cenas de ação não conseguiram me impactar, contudo tem várias qualidades no seu roteiro que ajudam a prender a atenção do leitor. É um passo importante para que Oda comece a desenvolver arcos mais complexos, com personagens secundários e vilões memoráveis. As cenas de ação se tornam mais épicas, mesmo que em nenhum momento desses quatro primeiros arcos, vejamos nada de monumental. Mas é inegável, independente de quanto você goste do arco, que se compararmos com Romance Dawn, Orange Town é com certeza mais grandioso e consegue convencer o leitor já em 1997 a comprar os primeiros volumes da série. É essencial não só na sobrevivência da série na Weekly Shonen Jump, mas na sua conquista da vaga de pilar.
Contudo obviamente One Piece não seria nada sem os “Nakamas” que compõe a tripulação dos chapéus de palha. Cada personagem principal apresentado no East Blue acrescenta algo a história, formando a cada arco um grupo mais redondo, além de criar no leitor uma curiosidade para saber qual será o próximo membro apresentado no arco seguinte. Sim, atualmente essa curiosidade diminuiu muito (mesmo que ainda temos discussões sobre o décimo mugiwara), contudo em 1997 cada arco podia apresentar um integrante novo, por isso sempre tínhamos a entrada de novo membro. E isso aumentava ainda mais a curiosidade dos leitores para ver qual seria a ilha sucessiva a ser visitada.
Zoro, o primeiro a integrar a tripulação, é um personagem essencial já que além de ter uma habilidade que consegue agradar a maioria dos leitores masculinos, serve também como oposto em personalidade a Luffy, criando assim uma relação engraçada e curiosa entre os dois, que melhora toda a dinâmica da série. A sucessiva entrada de Nami, com seu jeito agressivo e trapaceiro, adiciona ainda mais camadas nessa dinâmica de grupo. O primeiro trio cria uma interação engraçada, mas também única, vista em poucas séries da revista na época.
O arco da “Syrup Village” é sinceramente aquele que menos me agrada entre os cinco primeiros, por causa do seu roteiro arrastado e personagens não tão carismáticos, principalmente o antagonista do arco Kuro, que deveria ser um personagem inteligente, mas termina a realizar ações e planos estúpidos ao longo dos capítulos. A construção da tensão no arco é insuficiente, já que muitas pessoas sentem dificuldades em criar uma empatia imediata pelo mentiroso Usopp (que é um dos meus personagens prediletos da tripulação). Para piorar quantidade de capítulos, quase metade do mangá na época do seu lançamento, acaba deixando a leitura cansativa.
É justamente nesse arco que começamos a ver um pequeno problema na narrativa de Eiichiro Oda: a dificuldade de criar arcos sintéticos e também a necessidade de introduzir uma quantidade de absurda de personagens secundários. Essas caracteristicas, em arcos bem construídos na verdade se tornam qualidades, mas em arcos que a história não convence pesam. De qualquer modo, mesmo a introdução de Usopp sendo atribulada, a sua presença no grupo é espetacular. O seu jeito medroso e suas mentiras acrescentam na mêcanica dos tripulantes, servindo como um ótimo alívio cômico em várias situações diferentes.
Eu até entendo quem não gosta de Usopp, mas entre todos da tripulação é um dos mais humanizados. O seu sonho de se tornar um “Guerreiro Corajoso” é tão pessoal e metafórico em comparação aos demais sonhos, que dá uma camada ainda maior ao personagem. Além disso, seu desejo de encontrar o pai e sua relação sentimental com o Merry, o torna um dos personagens mais interessantes da tripulação principal, até mesmo durante arcos menores.
Mas se Syrup Village é um arco arrastado em certos momentos, com um vilão não convincente, Baratie é o melhor entre os quatro primeiros arcos da série. Mesmo Don Krieg não funcionando tão bem como vilão, o arco entrega vários elementos que o rendem o melhor até então: O primeiro sendo o design e atmosfera do restaurante – A arte do Oda, mesmo já sendo única, tendia a um design contido, mas em Baratie entrega o seu melhor navio até então -.
O segundo elemento é a relação entre Zeff e Sanji, com uma construção convincente da devoção de Sanji tanto a cozinha quanto ao seu chefe. A verdade é que tanto o passado de Zoro quanto de Usopp, mesmo tendo um lado trágico, não saíram do banal, principalmente aquele do Zoro, no qual a sua melhor amiga foi morta pelo Cair D. Escada. O passado do cachorro Chouchou me emocionou mais que as histórias de vida de Zoro e Usopp. Toda a construção da personalidade e do passado de Sanji é um grande passo em comparação aos arcos precedentes. Oda entrega assim o seu melhor personagem até então.
Justamente sabendo da necessidade de criar mais camadas em seus personagens secundários, que tendiam a ter uma boa interação entre eles, mas um passado vazio, vemos um maior desenvolvimento de outro personagem: O primeiro integrante do bando Roronoa Zoro, que tem seu momento de brilhar na luta contra Mihawk – Diga-se de passagem Mihawk tem uma introdução espetacular -. Oda compensa o passado medonho de Zoro criando mais um momento de reviravolta em sua vida, a sua traumática derrota para o Mihawk. Momento que será crucial para a sua evolução.
O último elemento é uma melhoria clara na arte de Oda, que entrega quadros mais claros, mais complexos e com construções visuais incríveis, como a despedida de Sanji na sua tripulação. Aliás, a entrada de Sanji na tripulação é uma outra adição impecável, pois entrega uma nova dinâmica: Uma rivalidade interna que no mesmo tempo que aumenta mais o lado cômico, cria uma dinâmica nas lutas que deixam as cenas de ação bem melhores. Não esquecendo da introdução da piada recorrente entre Sanji e Nami (e depois Sanji e outras mulheres) que se torna uma das mais clássicas de One Piece.
Mesmo com um defeito de ritmo em Syrup Village e nada de realmente monumental acontecendo nesses primeiros quatro arcos, a primeira parte de East Blue é uma leitura divertida com bons momentos dramáticos. A sua atmosfera leve com ótimas cenas de comédias e vilões caricatos lembram uma Weekly Shonen Jump que não existe mais, uma leva de mangás de Battle-Shounen menos sérios e mais descontraído, algo que o público japonês não parecer mais estar tão interessado. Retornar a ler esses capítulos me trouxeram também uma sensação de nostalgia, já que se passaram quinze anos da minha primeira leitura da série em 2008 e 2009. Essa é a terceira vez que releio e nunca me canso de revisitar esse ótimo começo da obra.
Nota: 8.0