Tradicionalmente a Weekly Shonen Jump lança entre onze e quatorze mangás em um ano, mas realmente somente dois desses conseguem sobreviver na revista. Em alguns anos, como 2004 e 2012, até vemos quatro ou cinco mangás de sucesso, uma quantidade absurdamente alta para o padrão da revista, mas mediamente são dois novos sucessos por ano. Deste modo, é claro que a grande maioria dos novatos terminam cancelados antes mesmo de ganharem uma adaptação em anime ou completarem três anos de vida.
Ice-Head Gill estreia na revista tendo que lutar contra a estatística, não só a estatística histórica que comprova que poucos novatos conseguiram se tornar um sucesso, mas a estatística recente no qual o público da Shonen Jump parece ser bem severo com os mangás de aventura ou battle-shounen. Até mesmo obras bem recepcionadas no ocidente, como Red Hood, terminaram sendo canceladas. O último Battle-Shounen de sucesso é Nige Jouzu no Wakagimi, lançado em abril 2021, mas que está volume após volume perdendo leitores.
Ice-Head Gill conta a história de Gill Sol, um jovem que vive escondido em uma ilha gélida, depois que seu pai (um importantíssimo cavaleiro) “matou” o príncipe da “Royal Capital”. Nessa ilha, Gill é tratado como escravo pela rainha, que o obriga a realizar todas as atividades possíveis. Inteligentemente o autor traz uma boa comédia nas primeiras páginas, brincando sobre as leis trabalhista (ausentes nessa realidade) e sobre a evasão fiscal, para assim dar uma introdução leve à série.
Muitos autores ignoram, mas em uma revista shonen como a Shonen Jump saber criar situações divertidas é essencial para conquistar os leitores nos primeiros capítulos. Séries como ONE PIECE, Dragon Ball, Dr. Stone, Boku no Hero Academia, Bleach, Black Clover, Hunter x Hunter e Naruto, são todos excelentes na comédia, e mesmo entregando momentos dramáticos memoráveis, sem as piadas acertadas, com certeza não teriam o sucesso que conseguiram ter. Temos também mangás que conquistaram os leitores com um primeiro capítulo muito dramático, como por exemplo Kimetsu no Yaiba, mas até mesmo Kimetsu nos capítulos seguintes utilizou muito da comédia para cativar os seus leitores. Eu acredito que o “timing” da comédia de Ice-Head Gill desde as suas primeiras páginas é acertado, mas não sou eu que a série deve agradar, mas sim os japoneses, que tem um humor diferente daquele ocidental.
Contudo, se Ice-Head GIll entrega uma boa comédia, entrega um protagonista SEM SAL, que não chama atenção de nenhum modo. E vou dizer, que se a comédia é um elemento importantíssimo na chance de uma série se tornar um sucesso, o protagonista é CRUCIAL. Eu posso elogiar todos os elementos possíveis, mas se o protagonista for uma pamonha sem gosto, o mangá não irá vender nem uma unidade. E Ice-Head Gill entrega um protagonista que não me chamou atenção logo. Se o autor não desenvolver uma personalidade mais forte, será um grande problema para o mangá.
Após uma leve introdução, o mangá desenvolve tanto o protagonista quanto a sua relação com a rainha, tentando criar uma camada que vão além de “explorado e explorador”. Por exemplo vemos como a rainha confia nas habilidades do protagonista, lançando o machado que ele usará para derrotar o primeiro inimigo desse capítulo e vemos, nas páginas seguintes, como Gil se sente mal pelo seu passado, pelo modo que seu pai é acusado erroneamente de assassinato, e como ele inventa uma doença (Fobia de comer sozinho) para assim jantar com a rainha. São cenas importantes que o autor usa para criar uma relação emotiva entre os dois personagens. Mas mesmo a tentativa sendo válida e coerente, a série não consegue sair do superficial muitas vezes.
Um outro ponto interessante nesse primeiro capítulo é justamente a sua arte. Em mangás como Do Retry e Nue no Onmyouji notamos autores que tem dificuldade em entregar uma arte constante, com momentos mal desenhados. Esses momentos são bem raros nesse primeiro capítulo de Ice Head-Gil, entregando assim um produto CONSTANTE – eu não avalio uma qualidade de uma arte por quanto eu a considero bonita, mas por quanto ela é constante e consegue satisfazer o objetivo do autor -. Contudo, se o autor consegue entregar uma boa arte, sofre com uma boa quadrinização, que não consegue guiar as cenas de ação de modo convincente, não desenhando momentos chaves para criar uma boa sequência de quadros.
A quadrinização não é uma tragédia, pois o autor mostra conhecimento da importância de desenhar os pequenos detalhes: A arte de Hichiya brilha nos pequenos quadros, quando desenha detalhadamente o peixe que Gill irá comer ou as mãos que seguram um tecido molhado. Autores que tem “arte fraca” tendem a deixar esses detalhes bem borrados e simples. Hichiya também consegue criar uma boa ambientação, conseguindo criar textura na neve, no gelo e nos flocos (quando necessário), algo que pode parecer simples, mas em um mangá que trabalha somente como preto, branco e tonalidade de cinzas, não é tão simples. A sublime ambientação é realçada pelo ótimo design de personagens, baseado na vestimenta dos vikings, e pelos cenários muito bem construídos (Montanhas, picos, árvores cobertas de neve, casas de madeira etc.).
Assim a cena de ação, que cobre 17 páginas das 58 desse primeiro capítulo não me agradou, mas tem suas qualidades. O vilão aparece com um design amedrontador e logo mata um dos personagens relevantes (Zakuro), possuindo-o. A luta entre Gill e o cadáver de Zakuro entregou sim uma luta dinâmica. A rainha a beira da morte, dizendo “A alma dele não está mais nesse corpo”, e o protagonista respondendo “Eu sei Tia Mela, o senhor Zakuro não irá retornar, afinal de contas ele não está respirando” antes de decapitar o seu inimigo me fez dar um sincero sorriso satisfatório.
A verdade é que o problema de quadrinização, acontece mais quando o autor precisa usar a arte para guiar o “PASSING” da série. O primeiro capítulo tem uma boa cena de ação, sabe desenhar os detalhes, mas sofre com um ritmo que prejudica a sua narrativa. Então, é de certo modo prova que estamos vendo um autor inexperiente, que eu sinceramente vejo muito potencial, mas também vejo vários defeitos que podem transformar Ice Head Gill em um grande fracasso.
Ikuo Hachiya encerra a obra abrindo as portas para a próxima aventura, no qual Gill se despede da rainha, com um diálogo bem sensível no qual o autor retoma a piada da “Fobia de comer sozinho” para criar um pequeno momento sentimental. Chorei? Não, é somente o primeiro mediocre capítulo de uma série. E é isso que resume muito bem o primeiro capítulo de Ice-Head Gil: um capítulo bem construído quando é apresentar pequenos detalhes e a ambientação, mas com uma quadrinização problemática, um ritmo confuso, um protagonista sem sal e uma narrativa não tão chamativa.
Ice-Head Gill entrega um mediocre primeiro capítulo, e PRECISA resolver vários dos problemas que citei nesse capítulo, se não será cancelado como Red Hood acabou sendo.