Essa semana explodiu no mundo “Otaku” uma polêmica relacionada à Chainsaw-Man. O dublador, Guilherme Briggs, após ameaças de mortes e tentativas de hackearem as suas redes sociais, anunciou que abandonaria a dublagem de Chainsaw-Man. O motivo dessas ameaças e ataques foi que a dublagem oficial de Chainsaw-Man não seguiu as traduções não-oficiais realizadas por uma scan brasileira (que não irei nomear).
A frase mais polêmica acabou sendo “O Futuro é Top”, que foi traduzida para “O Futuro é Pika” pela scan – essa tradução já na época tinha despertado um sentimento contraditório na comunidade que seguia Chainsaw-Man –. Esse sentimento na verdade não nasceu por causa dessa única frase, mas sim, por causa de contínuas traduções “estranhas”, para não dizer erradas.
Personagem sendo chamada de “Feminazi” ou piadas antissemitas eram comuns nas páginas traduzidas pela scan e não representavam de nenhum modo a intenção do autor. Praticamente, os tradutores estavam utilizando o próprio senso de humor para transformar cenas em algo, que na opinião deles, era mais engraçado. E pouco a pouco, capítulos após capítulos, foram viciando os leitores à uma narrativa mais transgressora (edgy).
Eu, Diego, Siul e o Michi já comentamos sobre quanto grotesca era essa tradução – talvez em algum episódio do Podcast ou em algum comentário do Analyse It vocês poderão encontrar uma opinião minha da época, inclusive –. E lembro muito bem que a discussão sobre essa temática nos comentários do Analyse It acabou sendo bem calorosa também, com pessoas concordando com minha visão e com outras discordando. Tudo respeitosamente, o que é sempre bem-vindo.
Quem consuma o material realizado pelas scans são praticamente três públicos: Quem não consegue ter o acesso legal ao mangá (por não ter o mangá no Brasil), quem até pode ter acesso (pelo MangaPlus por exemplo), mas não tem o domínio da língua inglesa, e por fim aqueles que poderiam comprar o mangá, mas por não ter o dinheiro ou não querer gastar o dinheiro com o volume oficial, acabam recorrendo a ilegalidade. São pessoas que em grande parte leem aquele mangá pela primeira vez através da scan.
No geral as scans como as oficiais adotam traduções quanto mais fiéis possíveis e se tiverem modificações, normalmente são por erros totalmente aceitáveis. Sim, tínhamos um uso exagerado nos palavrões (traduções como as de Naruto usam “Porra”, “Caralho”, em cenas que normalmente o Kishimoto utilizou simplesmente exclamações, mas são alterações toleráveis), contudo, foi nos últimos anos que explodiu um movimento de scans que quiseram colocar a própria impressão nas séries. E é nesse momento que o problema começou a surgir.
Essas três categorias de leitores vão se familiarizando com a obra através dessas traduções aberrativas e vão realmente achando que os termos pobres utilizados e até mesmo as piadas de baixo escalão são realmente parte integrante da obra, parte da personalidade dos personagens. Acreditam que por exemplo o protagonista gosta de dizer piadas racistas, quando o mesmo em sua obra original NUNCA disse algo do gênero. E passam a enxergar com “censura” o não utilizo dessas piadas ou expressões.
Quando o Michi, de modo irônico, brincou sobre o não uso da frase “O Futuro é Pika” no anime vimos algumas pessoas se irritando com a sua ironia (aqueles que levaram a sério também são dignos de um curso intensivo de interpretação de texto), pois “A TRADUÇÃO ERRADA É MAIS DIVERTIDA”. Mas o pior, em toda essa confusão sobre Chainsaw-Man foi ver veículos de notícia que DEVERIAM prezar por uma qualidade na sua redação defendendo essas alterações que alteram, em um certo grau, o significado de Chainsaw-man.
Tradução NÃO É BRINCADEIRA – uma tradução errada altera tanto a personalidade do personagem quanto vai corroendo a verdadeira intenção do autor, deste modo, uma tradução errada pode mudar o sentido da história, dependendo do grau da modificação –.
Scans que por brincadeira alteram o significado do mangá, estão fazendo um mal serviço para a comunidade. Pois, além de aumentar a resistência das grandes empresas com as scans, também acabam criando uma rivalidade entre os leitores que esperam uma tradução correta com aqueles que querem piadas “transgressoras” e “xingamentos baratos” (segundo público composto principalmente por adolescentes que acham divertido palavrões). Instauram uma situação de alerta que se transforma cedo ou tarde em uma guerra entre grupos de visão diferentes.
Já realizei algumas traduções e já conversei com várias pessoas, como o Gah, que trabalham e trabalharam seriamente no mundo das scans – São pessoas que respeito enormemente, por entregaram um material gratuito para uma comunidade que tem muita dificuldade em acessar as obras japonesas. Mantém a comunidade viva e pulsante. Mas, eu respeito aqueles que fazem suas traduções, suas edições, com uma boa-intenção, respeitando tanto a obra que estão trabalhando quanto o material que estão entregando aos leitores. Uma boa tradução é um ato de carinho tanto a quem produziu aquele produto quanto a quem o está consumindo. As existência das scans é um grande declaração de amor ao mundo dos mangás, mas não podemos defender todas as scans, devemos apoiar a grande maioria que entrega um produto espetacular -.
Adaptações para uma região (como por exemplo, o que aconteceu em “Tá dando Onda”) podem ser realizadas, mas na minha opinião, essas adaptações devem ser realizadas por profissionais que tem anos de experiência, com uma atenção mais do que alta. Nem sempre uma piada ou uma cena fará sentido quando for traduzida, mesmo assim adaptações só podem ser feitas quando não deturpam a obra original. No caso não se encontre um modo de adaptar uma frase, se pode sempre colocar um asterisco* e explicar no rodapé. Inclusive, eu aprendo muito japonês com essas notas de rodapés explicando uma frase local.
Era inevitável que essa “guerra” um dia acontecesse e aconteceu justamente com a obra que mais sofreu deturpações na tradução não-oficial: Chainsaw-man. É importante dizer que não podemos culpar os tradutores pela ação idiota de uma minoria de seguidores de Chainsaw-Man – esse grupo que está xingando e ameaçando de morte faz parte de uma classe deplorável de pessoas que existem na internet e utilizam das rede sociais para destilar ódio -. A responsabilidade de um tradutor é sobre como os leitores irão interpretar uma obra e só. Ameaças de morte vão além de qualquer coisa.
Essa parcela “doentia” que leva a níveis quase psiquiátricos a própria relação com um produto existe em todos os campos, do mangá ao cinema, da política ao futebol, do hobby ao emprego. É um grupo de pessoas que infelizmente não conseguimos nem evitar, são barulhentos e irritantes, e acabam silenciando as pessoas mais sensatas, que tendem a conversar com tons mais baixos. É por isso que também precisamos compartilhar as opiniões mais moderadas e mais coesas sobre a situação, para opiniões tão insensatas não possam continuar a se proliferar como vírus. Não devemos gritar alto como os loucos, devemos reforçar as discussões saudáveis.
Para evitar que uma situação como essa se repita, devemos SIM apoiar todas as scans (a maioria delas) que realizavam um trabalho impecável com traduções quanto mais fidedigna possíveis e devemos criticar aquelas que por capricho do tradutor ou do editor decidiram alterar o sentido das frases da obra. Não precisamos de tradutores que querem colocar a sua impressão digital na obra, queremos ler obras com a impressão digital do autor.
1 Texto atualizado às 10:58, do dia 14/01/2023, adicionando um paragrafo e uma frase a mais.