As origens de Choso!
Nesse segundo capítulo da série: “Cultura & Mitologia Japonesa”, no qual comento sobre aspectos históricos, culturais e mitológicos da cultura japonesa, que podemos encontrar nos mangás, irei tratar de uma “corrente artística” que se popularizou no budismo, a quase 1000 anos atrás, e que pode incrível que pareça, estamos vendo em Jujutsu: Tanto no arco “Cursed Womb: Death Painting” quanto em nesse arco atual.
Esse artigo, para ser acessível a todos os leitores do Analyse It, terá somente uma sessão com spoilers (A última sessão do artigo, no qual avisarei que teremos spoilers de Jujutsu Kaisen), os demais pontos irei tratar de modo detalhado a cultura por trás dessas pinturas da morte, porém não me aprofundarei sobre o que acontece em Jujutsu Kaisen, justamente para evitar que a leitura de Jujutsu Kaisen seja de algum modo estragada. Obviamente, um minimo de spoilers será sempre presente.
1. Introdução
Para quem não sabe, Jujutsu Kaisen é um mangá de Gege Akutami, lançado semanalmente desde 2018 na Weekly Shonen Jump, maior revista de mangás do Japão. A série conseguiu agradar imediatamente os japoneses e em 2020, com seu anime, conseguiu conquistar o mundo. Atualmente, a série está caminhando para se tornar o mangá mais lucrativo do mercado japonês, superando inclusive ONE PIECE.
Jujutsu Kaisen é uma obra que utiliza de vários elementos budista para narrar sua história: Símbolos, personalizações, elementos de espiritualidade e também certos elementos históricos. As pinturas da morte, apareceram pela primeira vez na história no Capítulo 53 do mangá (Episódio 21 do Anime) e chocaram muitos leitores por ser bastante assustadores e curiosas. O autor, porém, pescou todos esses elementos de uma visão artística e científica do budismo.
O budismo, como muitos já sabem, não nasceu no Japão, porém foi introduzido ao pouco no Japão por causa da relação cultural e comercial que o país tinha com a China imperial. Muitos acreditam que a influência do budismo no Japão tenha começado já em 100 A.C, porém é somente no Período (710 – 794 D.C) que temos dados concretos da introdução da religião na cultura japonesa.
Nos períodos seguintes, a influência budista só aumentou, tendo uma larga difusão justamente no “Período Heian” (794 – 1185), quando vimos as escolas de budismo esotérico Tendai e Shingon terem uma grande relevância cultural, política e religiosa. Porém, a escola budista que mais influência as obras de Jujutsu Kaisen, nasceu durante o “Período Kamakura” (1185 – 1333). Nesse período vimos surgimento do Budismo Zen, que pregava justamente a pureza e a iluminação espiritual, através da meditação, da respiração e das artes marciais. Esse budismo também pregrava pela observação técnica da natureza que nos circundava.
2. Kusozu, os nove estágios da decomposição humana
Foi justamente no Século 12, quando o budismo já era muito difuso no Japão, que vimos o nascimento dessa tradição Japonesa. Entre 1200 e 1400 começaram a surgir várias pinturas que se referiam a corpos em decomposição. Essas obras eram normalmente desenhadas por monges budistas e representam, em sua grandíssima maioria, corpos de mulheres em putrefação.
O motivo pelo qual normalmente representava corpos femininos, é muito discutido: Muitos acreditam que fosse para distanciar os budistas do desejo carnal pelo sexo, como apresentando no livro “Japanese Journal Of Religious Studies” de Gail Chin. Outros acreditam seja uma clara representação da misoginia que dominava no Japão Medieval, já que as mulheres eram vistas como seres socialmente inferiores.
Seja um motivo ou outro, é inegável que naquela época os monges acreditavam que havia uma grande conexão entre a natureza humana e a morte. A glorificação e a observação científica do corpo post-mortem, são uma característica contínua em várias escrituras, histórias e pinturas do período. Era comum, no Japão medieval, deixar os corpos se decomporem ao aberto em montanhas ou cemitérios, justamente para deixar os animais e a própria natureza se apropriarem da carne humana.
Tivemos também no ocidente, principalmente durante o “Renascimento” um estudo sobre a decomposição humana, e por mais que não chegavamos a observar os corpos no cemitério, muitos estudiosos médicos e catolicos selecionavam certos corpos para observá-los se decompor em variados ambientes diversificados. Existem também pinturas do mesmo período que também demonstram a putrefação humana. Esse processo de conhecimento da morte, por mais que “nojenta”, foi essencial para a evolução da medicina humana.
E além da medicina, além de quanto grotesca e cruel pode ser essa tradição, para muitos monges, observar os corpos se decompor, os ajudavam a lembrar a verdadeira natura humana: Somos uma parte da natureza e sempre seremos. A morte é uma grande prova, que por mais que tentamos encher nosso ego de luxurias e pretensões, sempre retornamos a nosso estágio inicial. É justamente esse pensamento naturalístico e budista que nasceram as pinturas “Kusozu”, que representavam exatamente os NOVE ESTÁGIOS DA DECOMPOSIÇÃO HUMANA:
ALERTA: PINTURAS POTENCIALMENTE FORTES
Primeiro Estágio – Cho-so (脹相, Distensão): Como podemos perceber da primeira pintura, a mulher ainda está viva, escrevendo o texto de adeus. Após a sua despedida do mundo material, o seu corpo ainda intacto e não se vê os sinais claros da decomposição (como o início da liberação dos gases e encerramento da coagulação do sangue). PS: Os nomes após os ideogramas, não sempre suas traduções.
Segundo Estágio – E-so (壊相, Ruptura): Nesse estágio, normalmente, é reconhecido o corpo, que se encontra gélido, com a pele rasgada e o sangue totalmente estático. Como podemos ver na pintura, o corpo ainda está em bom estado, porém, já demonstra alguns sinais de decomposição: O Pallor Mortis (Palidez da pele após 15 a 30 minutos da morte), Algor Mortis (Esfriamento do corpo) e Livor Mortis (Deposição sanguínea em algumas zonas)
Terceiro Estágio – Kechizu-so (血塗相, Liquefação): O corpo inicia a se liquefazer (Já estamos falando de vários dias, e não mais horas) os gases enchem o abdômen e o corpo da pessoa. A pele e carne danificada, libera os seus líquidos corporais, resultando assim no começo da fase da Liquefação do corpo.
Quarto Estágio – Noran-so (膿爛相, Putrefação): É nesse momento que começamos a ver o estágio da putrefação do corpo. Esse período demora entre 1 a 6 semanas, por isso não é um processo rápido. O corpo inicia a se descompor, causado pelos vermes e insetos que surgem ao interno da carne.
Quinto Estágio – Shouo-so (青瘀相, Dessecação): O corpo começa a secar, se tornar também mais azul (de onde deriva o nome Shouo).
Sexto Estágio – Tan-so (噉相, Consumação): Os animais ao redor começam a consumar o corpo. É importante dizer que na análise ocidental sobre o Post-Mortem, essa fase pode iniciar bem antes, antes da putrefação.
Sétimo Estágio – San-so (散相, Dissimilação): A carne inicia desaparecer, e por isso um único corpo inicial se torna vários pedaços diferentes. Se passaram já várias semanas desde a morte.
Oitavo Estágio – Kotsu-so (骨相, Ossos): Resta somente os ossos no ambiente. Pelo pouco que estudei de laboratório forense, os ossos restam no ambiente, em média 2 anos.
Nono Estágio – Sho-so (焼相, Cremação): Os ossos são recolhidos, cremados e resta somente o pó. A pessoa é colocada em um recipiente para ser lembrada a sua existência.
3. As pinturas da morte (Kusozu) em Jujutsu Kaisen
As maldições “Death Painting Wombs” são normalmente fetos que não tão vontade própria, podendo ser utilizados de vários modos, dependendo da exigência do exorcista. Porém, quando são incarnados em um recipiente metade humana e metade maldição, conseguem criar vontade própria e utilizar magias extremamente potentes, que podem trazer grandes danos. Se tornam, deste modo, espíritos amaldiçoados muito perigosos, de nível especial.
Essa relação estranha que os “Death Painting Wombs” tem com a morte, com a putrefação, com sangue, os fazem ter algumas características especiais: Facilidade em controlar o próprio sangue e seus corpos não desaparecem quando são mortos. Porém é importante lembrar, a aparência muda dependendo do estágio da morte (podem parecer grandes aberrações ou serem idêntico à um ser humano), por isso mesmo assim são muito variaveis.
Por enquanto, em Jujutsu Kaisen vimos os três primeiros estágios e um referimento ao nono estágio. Irei comentar as características de cada personagem, sem dar spoilers sobre o motivo pelo qual esses três personagens aparecem na história, a função deles na narrativa e, obviamente, o que acontece com cada um deles.
Choso: Como podemos notar, o personagem ainda está bem no começo da sua morte. O seu nome, todavia, significa flatulência, que é quando os gases se expandem no corpo humano após a morte, por isso é improvável que Choso não tenha morrido, é provável que tenha morrido a poucos minutos. Choso é totalmente humano e vivaz, mas os seus olhos já mostram um cansaço, como fosse de certo modo, já morto interiormente.
Eso: O segundo estágio, por isso, já apresenta algumas pequenas características da morte. As suas costas são uma representação justamente da sua pele do rosto em decomposição, deforma e rasgada, por isso Eso tem medo de mostrá-la. A sua quase nudez pode ser um referimento como as roupas dos corpos são retiradas após a morte. E por fim, como também vimos na pintura, o seu corpo é mesmo assim ainda muito humano e muito bem conservado.
Kechizu: Esse talvez seja aquele que vemos uma clara correlação com o estágio da morte. O seu corpo cheio de gases e com líquidos escorrendo, representa justamente a liquefação do corpo humano no terceiro estágio da morte, quando os líquidos biológicos são expelidos do corpo. O uso da cor azul, não comum do corpo humano, é mais para relacionar a sua existência a algo mais melancólica e espiritual, já que não deixa de ser uma maldição.
[SPOILER] Tivemos também referimento a Shoso, o irmão mais jovem de Choso – Como vocês podem ver o autor decidiu citar DIRETAMENTE o nome desse personagem, podendo indicar uma relevância na história. Choso comentou também que todos os seus irmãos estão mortos, mas isso também é bem relativo. Obviamente Shoso, se utilizarmos as pinturas, seria simplesmente pó, mas talvez Gege Akutami nos revele uma grande surpresa em relação ao personagem. Quem sabe seu poder seja relacionado ao pó ou ao fogo? Quem sabe. [/SPOILER]
De qualquer modo, todos os três personagens que apareceram até então, são irmãos, porém não são filhos de nenhuma mãe, eles simplesmente existem, como a própria decomposição humana simplesmente existe, sem depender diretamente de um criador. Todos os oito irmãos de Choso, são parte da natureza, são maldições que simplesmente existem, são o medo do homem da decomposição, da morte. De certo modo, a existência humana é a mãe deles.
O uso do “Kusozu” em Jujutsu Kaisen é bem inteligente e entrega camadas a sua história que muitas pessoas que não conseguem perceber: São esses pequenos detalhes que transformam uma história simples, em algo muito mais profundo e complexo. Eu realmente espero que o autor apresente os outros irmãos, ou pelo menos apresente o nono irmão, que eu acredito que tenha um poder muito curioso. Mas se também não apresentar, faz parte, a história tem várias outras referências bem interessantes.
Eu espero que vocês tenham gostado desse segundo episódio de “Cultura-Mitologia Japonesa”.