Autor do Conto: Leonardo Nicolin (@AnyoneNico)
Arte: Michel Mims (@mimscosara)
Ilustração de “Desde Sempre – Dois Contos de Neon”
Para comemorar o aniversário de 7 anos, decidi trazer um conto meu, chamado “Dois contos de Neon” – Estranho? Eu sei, porém são dois contos que na verdade valem como um, pois se completam na temática. Escrevi esse conto em Março de 2020, quando a pandemia tinha apenas começado aqui na Itália e quase não tinha casos no Brasil. É um texto que escrevi com meu coração e espero que vocês gostem. A arte é de Michel Mims, um grande professional que faz várias outras ilustrações espetaculares. Recomendo dar uma olhada no Instagram dele! Então, esse é o meu presente a vocês, boa leitura!
1. Desde Sempre
Com uma pá, cavava a sua trigésima quarta cova do dia. A chuva, que transformava a terra macia em um mar de lama negra, tornava o expediente muito mais dificultoso. Seus músculos rasgavam cada pazada realizada, causando-lhe uma dor irradiante por todo o corpo vetusto. Para piorar, a pacata noite escurecia o cemitério, e por mais que os postes iluminavam o ambiente; a miopia e astigmatismo desenvolvido ao longo dos seus 60 anos rendiam tal iluminação insuficiente. Sabia que na sua idade, uma ocupação menos manual seria o ideal, mas a realidade muitas vezes não é a amante das expectativas.
Caminhando com um guarda-chuva metálico e cinzento, chegou a sua substituta. Era o momento da mudança de turno: Oito da noite. A jovem coveira observou o seu companheiro de trabalho; o cenário era penoso, estava lambuçado de lama. O trator que usavam para cavar estava parado, quebrado, em um canto do cemitério. Porém não importava, era o momento de começar o serviço. Com uma simples frase; ordenou o seu guarda-chuva de retrair-se e fechar, molhando o seu corpo com a fria chuva noturna.
– É incrível como vivemos em 2060 e alguns serviços continuam extremamente manuais, não é? – Disse o velho enterrador, olhando para a coveira que estava pronta para começar mais uma jornada de longas escavações – Eu cavei trinta e quarto covas hoje, pelos meus cálculos de ignorante, você deveria cavar somente outras dezesseis.
O experiente sepultador deu um leve sorriso amarelo, que não foi retribuído. A trabalhadora restou imóvel e inexpressiva. Decidiu só observar o cemitério que a circundava: Fossas, árvores velhas, árvores mortas, insignificantes ramos e raízes, outras fossas, vermes nojentos, um grande lamaçal e ainda mais fossas. Depois, desanimada e triste, olhou para o seu companheiro.
– Existia um tempo no qual essas pandemias eram mais raras, agora temos uma diferente cada três ou quatro anos… Quando não temos pandemias simultâneas. – Comentou enquanto vestia a sua luva metálica e pegava na sua mochila um pequeno cubo de néon, que além de escavar, iluminava todo o cemitério escuro – Não sei como você consegue viver nessa escuridão.
O cubo “neontico” era uma invenção genial. Conseguia flutuar no ar e expelia lasers dos seus quadros, que com extrema precisão conseguiam cortar, evaporar e anular materiais simples; deste modo, era possível realizar várias funções que antes eram necessários objetos mais manuais.
– Você vai usar o cubo para cavar? Essas modernidades, eu não consigo entender… – Disse o coveiro ancião, que ao terminar sua tarefa diária de cavar, jogou a sua enferrujada pá no chão, e começou a sair de dentro da cova – Eu quando tenho a minha pá, esqueço todo o mundo, esqueço a dor muscular, esqueço essa maldita chuva invernal, eu até me divirto em criar tombas!
Novamente, a sua parceira simplesmente reagiu com uma expressão de desdenho; não suportava mais tais comentários conservadores. Não importava esse discurso anti-modernismo, o futuro já havia chegado. O seu objetivo não era se divertir, era realizar a sua função do modo mais eficiente e rápido possível, e somente uma tecnologia moderna poderia permitir tal perfeição. Cavar covas não deveria ser uma vil brincadeira, mas sim, um ato técnico.
Quando ia apertar o botão para ativar o cubo, concidentemente, vindo da entrada do estabelecimento, ouviu o soar de um estridente alarme; e logo sentiu o seu coração apertar. Havia chegado o primeiro caminhão, com vinte e cinco cadáveres. Trabalhava a cinco meses como coveira e toda vez que chegava o caminhão com os corpos, sentia algo estranho. Os mortos podiam estar cobertos por uma tela branca de teflon, mas ainda eram corpos em decomposição. E o que sentia, não era uma simples tristeza, era algo muito maior, era um estranho aperto no peito, indecifrável. Já o coveiro, inerte a tais sentimentalismos, continuou o seu discurso como nada fosse, até o momento que a garota decidiu interrompê-lo.
– Não entendo… Quando se tornou tão comum as pessoas morrerem deste modo? – O seu volto mostrava um grandíssimo desânimo, e com uma voz tremula perguntou – Você viveu a primeira grande pandemia moderna, não é? Você ainda se lembra de quando a vida tinha um valor?
– Pergunta estranha minha filha… Eu não lembro de quando a vida tinha esse… valor? Talvez esse período nunca tenha existido, sabe? Ontem os jornais comentavam que antigamente as pessoas se chocavam com tantos mortos, mas não sei se é verdade. Eu estava vivo e eu não lembro de chorar. Não lembro de ter visto ninguém chorar, nem na televisão. – Se aproximando da jovem aflita, continuou o seu discurso – Sabe, às vezes tenho a sensação de que esse sentimentalismo seja tudo uma invenção da mídia.
– Talvez seja… Talvez seja – O caminhão se aproximou, suas rodas quase entalavam no lamaçal que compunha a fossa comum; a sepultadora juvenil observou atenciosamente o despejar dos corpos, os seus olhos esbugalhados transmitiam somente a angústia que sua alma bramia. Enquanto o odioso alarme estridia ao ponto de doer os tímpanos, o caminhão realçou a sua caçamba e os primeiros vinte cinco corpos amontoados, como fossem carne estragada, deslizaram até a ponta e depois despencaram, chocando-se no terreno empapado.
Ao tocar o solo, os corpos afundavam, sujando de marrom e preto os lençóis límpidos e sutis que os cobriam. Os cadáveres caíam uns em cima dos outros, alguns rolavam para esquerda, outros para a direita, mas a grande maioria restava em sobre o seu anterior, criando uma larga pilha de corpos; molhados, imundos e desasseados. Os olhos da jovem resplandeciam agonia. Tamanha iniquidade a paralisava.
– Não é! Esse sentimentalismo deve ser real, não pode ser uma simples invenção da mídia. Devemos ter um valor… Não temos? Não somos só trinta e quatro covas, não somos só vinte e cinco carcaças, somos mais, somos mais que isto… Ou não somos mais? – Com uma respiração arfante e uma voz aflita, exclamou a jovem. O velho simplesmente apoiou a sua mão suja de lama no ombro da sua companheira.
– Sabe… É normal, você só está ansiosa. Para um pequeno número de pessoas, os primeiros meses aqui são difíceis, mas você não deve se preocupar, você nem sabe o nome de nenhum deles. Ninguém aqui conhece o rosto dos mortos. – Com o seu sorriso amarelado tentou alegrá-la – Precisamos continuar nosso serviço, temos um pagamento para receber. Meu mestre sempre me dizia, trabalhamos cavando fossas, para que a fome não nos leve a dormir dentro delas.
Sozinho, deu-se a gargalhar. Amava essa piada antiga, que ninguém mais suportava ouvir, de tanto que havia contado. Após uma intensa gargalhada solitária, olhou novamente para a jovem, que continuava pronta a explodir em lágrimas – Limpe a sua mente. Você se sente pronta para começar a trabalhar?
– Não sei… Eu sinto como meu coração estivesse para… estivesse para… Não é nada, você tem razão. – No exato momento que a sepultadora expeliu tais palavras, o cubo de néon se ativou, resultando em uma explosão de luz que dilatou a pupila da trabalhadora. O néon se espalhou rapidamente por todo o cemitério, iluminando cada canto obscuro, cada cova mal cavada, cada verme escondido – Incrível. Espetacular. Eu nunca vi o dispositivo criar uma luz néon tão forte. É estupendo.
De fato, o dispositivo nunca havia produzido tanta luz; todo cemitério brilhava. As folhas secas e galhos mortos que circundavam a área voltaram a ganhar vida, e irradiavam uma cor exultante e vivaz. Se antes o cemitério propagava morte, agora era amparado por encantadoras cerejeiras e suas delicadas folhas rosáceas, que flutuavam no ar e cobriam o molhado sútil terreno. E no peito, a jovem sentia como estivesse relaxando em águas calmas.
O amontoado de corpos, cobertos com os lençóis brancos, adotaram uma tonalidade graciosa que a deixou bêbada e estonteada. Não pareciam mais carne em decomposição, mas sim cerejeiras em uma primavera japonesa. As pupilas dilatadas da garota refletiam somente e unicamente as intensas faixas de luzes paradisíacas.
– É espetacular… Como é possível existir algo tão lindo e perfeito? – Perguntou a jovem sepultadora, suspirando alegria, como não estivesse mais sobre um oceano de cadáveres.
2. LUZES DE NEON
como as luzes de NEON são interessantes; vivas, intensas, chocantes… ontem eu caminhava pelo subúrbio pobre de paris, eu estava odiando o local; pichações, cigarros no chão, pedaços de latas, ratos caminhando e mendigos… como eu odiava olhar tamanha pobreza. me deixava aflito pensar que tanta tristeza vivia perto da minha casa
tudo mudou quando me deparei com uma estupenda fachada rosa neon; “2061 BAR – LIVE CONCERT”. dilataram-se as minhas pupilas e minha mente se estupefez, parecia que as cores pulsavam e queimavam dentro daqueles tubos. como uma serpente encantada, balei em direção ao bar, e entrei para ver o que tinha dentro. eram luzes de NEON em todas as paredes, tamanha claridade cegou-me totalmente, meus olhos se tornaram pura cor ROSA NEON. mergulhei profundamente em um estado transcendente, eu me senti nadando em um oceano cheio de corais coloridos
no centro da sala observei um estupendo cubo de neon; pulsava, flutuava e girava variando em cores e intensidade, cada cor despertava em minha eufórica alma uma sensação diferente. inicou com um rosa florescente, depois veio o verde, que me trouxe esperança, logo após azul que me hipnotizou em uma imensidão oceânica, o vermelho que… o amarelo… o roxo… e retornava ao rosa. esse rosa não parecia vir da nossa realidade mundana, era superior, tinha algo de único e especial, algo que somente quem vivenciou poderia entender.
e foi ao rever o rosa, que o meu coração palpitou como nunca havia sentido, meus olhos se moveram paranoicamente, minhas mãos tremaram descontroladamente, meu corpo não soube como reagir; respirar ou afundar nessa “auroreal” sensação, e, sem eu nem mesmo perceber, meus olhos iniciaram a lacrimejar, eu estava chorando, despencando em prantos, mas eu não estava alegre, muito pelo contrário, me sentia preso em uma desesperação descomunal…
foi somente naquele momento eu entendi a beleza das luzes de NEON e percebi que até o mais simples cartaz de NEON será mais impactante que qualquer miséria humana.